Ao longo de múltiplas gerações, a Escola Conde Ferreira de Cantanhede, que funcionou fundamentalmente como escola do 1.º ciclo, marcou indelevelmente um sem-número de pessoas que caracterizaram a vida da cidade, e do concelho. No meu caso particular, só muitos anos depois de a frequentar me surgiu a curiosidade de perceber um pouco melhor aquele edifício enquanto símbolo de algo que, para mim, continua a ser fundamental na “construção” de uma pessoa.
Ao contrário do que eu pensava, a “escola amarela” em Cantanhede não fez parte do “Plano dos Centenários”. Este plano foi uma iniciativa do Estado Novo que, entre os anos de 1941 e 1969, teve como objetivo a construção em larga escala de escolas no território português. O plano deve o seu nome ao terceiro centenário da Restauração da Independência e ao oitavo centenário da Independência de Portugal. A “escola amarela” é, no entanto, um belo exemplo do que foram as escolas Conde Ferreira. Mas, afinal de contas, quem foi Conde Ferreira?
“Joaquim Ferreira dos Santos, o Conde de Ferreira, foi um dos grandes impulsionadores da instrução pública em Portugal. Nasceu no seio de uma família pobre e com 14 anos emigrou para o Brasil, onde fez fortuna. Faleceu em 1866, já em Portugal, e deixou em testamento 144 mil réis destinados à construção de 120 casas-escola para o ensino primário, com alojamento para professores. Este foi o primeiro passo para o surgimento, em vários municípios, de norte a sul do país, das escolas Conde de Ferreira, edifícios com uma arquitetura simples, funcional e facilmente identificável.” [1]
As Escolas Conde Ferreira
“Será sob a pressão da iniciativa filantrópica que o Estado se viu na necessidade de estabelecer as normas a que deviam obedecer a construção de escolas de primeiras letras, e que inaugurou uma tipologia oficial desses edifícios: as escolas Conde Ferreira. […] Eram edifícios de linhas clássicas, com fachada encimada por um pequeno frontão triangular e porta ladeada por duas janelas. Na fachada lateral localizava-se a porta de acesso dos alunos. A sineta, na fachada principal, assinalava a hora de entrada e de saída e chamava as crianças à escola. Tinha de uma a duas salas, e uma mais pequena para os trabalhos de costura, ou para biblioteca. A extensão da sala de aula seria de acordo com o método de ensino adotado. Permitia geralmente a sua utilização por 50 alunos. Na parte posterior ficava a casa do professor e sua família. Procedia-se a uma separação espacial da casa e da escola, assumindo a escola o lugar central e a residência do professor o lugar secundário, nas traseiras do edifício.
As escolas podiam ser para os dois sexos, mistas ou frequentadas por crianças de um só sexo. Quando mistas, havia a preocupação em separar as meninas dos meninos, quer na sala de aula quer no recreio, recorrendo a separadores amovíveis na sala de aula. Se destinada aos dois sexos a planta era como duplicada, funcionando como dois edifícios geminados. Contudo, as generalidades dos edifícios construídos eram de sala única. Muitos destes edifícios ainda hoje existem como escolas, remodelados, onde as marcas da apropriação por outros discursos são visíveis, como no caso da Escola de Cantanhede, com a junção de símbolos e temas caros à Ditadura. Alguns edifícios têm sido adaptados a outras funções: bibliotecas, jardins de infância e até a esquadra de polícia. Ainda hoje não há a certeza se as 120 escolas do legado foram construídas, pois não foram referenciadas na totalidade. […]”. [2]
Perante esta descrição, saltou-me à vista um pequeno detalhe que, certamente para muitos que, como eu, por lá passaram, me causou alguma estranheza. Como certamente a maioria saberá, hoje funcionam nestes edifícios o Museu LOAD ZX Spectrum e a Cantanhede Creative School. Para que tal se concretizasse, foram levadas a cabo obras de requalificação e uma das valências dessas obras foi precisamente a pintura exterior. Pois bem, nisto em particular fui um acérrimo crítico, pois não percebi o porquê de trocar a cor principal da escola Conde Ferreira em Cantanhede do típico amarelo para um frio branco.
Foi precisamente no passado dia 2 de dezembro que, numa amena cavaqueira com um ex-colaborador da Câmara Municipal de Cantanhede, pude constatar e perceber o porquê desta, na altura para mim, aberração. Segundo o engenheiro David Caetano, um dos responsáveis pelas obras de requalificação deste equipamento público, a cor original da escola era mesmo o branco! Quem me conhece certamente já percebeu que não me fiquei por aí e desatei a perguntar aleatoriamente, a pessoas mais velhas que eu, “qual era a cor original da Escola Conde Ferreira de Cantanhede”?
As respostas foram quase unânimes, e, apesar de alguns de imediato se escudarem no previsível “amarelo, claro!”, depois de um segundo de reflexão, recuaram todos e afirmaram ter sido o branco. Houve inclusive quem detalhasse que as entradas laterais da escola tinham como objetivo a separação dos alunos por género, o que também vai ao encontro da descrição acima sobre este tipo de escolas.
Assim sendo, tive de dar a mão à palmatória e apresentar ao meu bom amigo David Caetano os meus parabéns pelo trabalho de recuperação da memória do que foram os equipamentos comuns a tantas e tantas gerações. Uma das funções de quem tem a responsabilidade de tomar decisões tem de ser a de garantir que a lógica de manutenção dos valores morais e materiais é concretizada de uma forma o mais fiel possível à sua raiz, tentando sempre dar-lhe um traço de modernidade. Tivessem, no caso de outros equipamentos públicos, a mesma clarividência e eficácia, certamente já estaríamos a usufruir deles…
No caso desta escola, felizmente, penso que se conseguiu… Parabéns, David e restante equipa!
[1] https://www.sesimbra.pt/noticia-72/escolas-conde-de-ferreira-73
[2] http://comenius-projekte.eu/eubuildit/www2.warwick.ac.uk/fac/soc/wie/eubuildit/educational/tipologias/index.html
Pintura de capa por P.L. Martin des Amoignes
Partilha este artigo:
Deixe um comentário