Como diria o amigo François, “é louco, simplesmente louco” o ritual que praticamos regularmente há muitas décadas nas universidades portuguesas. Refiro-me ao que fazemos para promover um professor a uma nova categoria – abrimos um concurso.
As regras são definidas por um edital que descreve o processo, os prazos e os documentos que os concorrentes devem submeter, a constituição do júri que os irá avaliar e sobretudo os critérios que serão utilizados para os ordenar justa e imparcialmente.
Em certos países não há sequer edital – uma página anuncia o concurso, as datas e os documentos; é tudo. Mas aqui, não é assim. Pelo contrário, os editais até têm crescido em número de páginas, o que se justifica plenamente num estado de direito pelo princípio da finalidade do concurso – contratar o melhor, o crème de la crème – através de um processo de tomada de decisão transparente e objectivo. Para isso, os critérios de avaliação devem ser operacionalizados e a aritmética aplicada. Vamos então contar para cada candidato o número de artigos publicados em revistas internacionais, o montante em euros captados a agências de financiamento de pesquisa, o número de teses de mestrado e doutoramento que orientou, o número de disciplinas dadas e a média das avaliações dos estudantes para cada uma delas, a quantidade de materiais pedagógicos que distribuiu (programas, powerpoints, apontamentos), as patentes que registou, os congressos organizados, os cursos reformulados, os relatórios escritos, os cargos de gestão ocupados,… e a lista continua.
“Simplesmente louco.”
Inspirado no edital, o currículo do candidato enche-se naturalmente de dezenas de listas, uma com as centenas de participações em conferências, outra com as centenas de posters apresentados, outra ainda com centenas de artigos publicados, etc., etc. O júri contabiliza depois os artigos, soma os euros, divide números por anos, integra avaliações, calcula médias e medianas, invoca funções transcendentais, pondera, e depois de muito calcular gera no seu Excel mais uma lista, desta feita a lista com a ordem dos candidatos, dos vencedores e dos vencidos. Na reunião final, de apenas uma hora e com a mais pura transparência e objetividade, o júri decide enfim quem ganha e quem perde.
“Simplesmente louco.”
O que medem todos estes critérios, dimensões e vertentes? Presumindo que medem alguma coisa, como é que essa coisa se compara com o que a instituição pretende (ou devia pretender) promover? Como é que os meus amigos comparariam a minha actividade de investigação do comportamento dos pombos em laboratório com a actividade de uma colega psicanalista activa (o exemplo nada tem de fictício)? Que métrica se pode aplicar a todas as áreas de uma disciplina sem as violentar? Qual a importância do número de disciplinas ensinadas ou de teses orientadas (mal ou bem, isso sequer importa?) E o que medem as avaliações dos estudantes? Como se compara quem publica muito mas capta pouco dinheiro com quem publica pouco mas capta muitos euros? Qual a finalidade da instituição universitária? Do edital julgamos saber, mas da instituição parece que esquecemos.
“Simplesmente louco”.
Os artigos deixaram de ser escritos para serem lidos e passaram a ser escritos para serem contabilizados. (É por isso que quando jovens docentes ou investigadores se apresentam a entrevistas de emprego, a primeira coisa que referem ao júri sobre a sua investigação é quantos artigos já publicaram e que montante de finaciamento já captaram. Dão ao júri o que o júri quer ouvir. Ficam para mais tarde as descobertas que fizeram ou as ideias que tiveram para o estudo seguinte…)
“Simplesmente louco” que não nos apercebamos desta “folie à deux”, que a universidade acredite que sabe definir o melhor investigador/docente em áreas tão diversas e que os membros do júri acreditem que assim é, e que basta auditarem os números, seguindo religiosamente o edital, para no fim gritarem “Heureka! Encontramos o melhor candidato”.
“Simplesmente louco”.
O sistema actual de promoção nas universidades raramente é justificado de forma explícita por aqueles que o implementam. Isto já de si é revelador. Mas quando o é, ouvimos coisas do género:
1) Os concursos fazem-se há muitos anos;
2) Os concursos baseiam-se cada vez mais em indicadores objectivos;
3) Os concursos têm promovido os melhores docentes/investigadores; e
4) Outros países também os fazem, certo? E se não for assim, como fazer?
Vejamos.
1) A longevidade deve-se apenas à nossa inércia e ao receio irracional dos nossos governantes – o sistema actual parece manter-se mais pelas imposições do ministério das finanças, que receia uma promoção desenfreada com aumento concomitante dos custos, do que por quaisquer justificações positivas do ministério da ciência e ensino superior.
2) Indicadores objectivos são de facto mais consensuais; contar é sempre mais fácil e, convenhamos, não exige reflexão. Mas o que diríamos se alguém se propusesse avaliar terapeutas pelo número de clientes, ou pintores pelo número de quadros, com o argumento de que tais indicadores são mais objectivos? O que diríamos se a qualidade da docência incluísse o número de alunos por turma ou se o valor de um livro dependesse, ainda que em parte, do número de páginas de acordo com a função matemática arcotangente, por exemplo? (Se acha que estou a inventar é porque sobrestima a minha imaginação e subestima a dos autores destes processos de avaliação.) Surpreendidos por tais critérios pediríamos certamente que nos mostrassem que o número de páginas tem alguma relação com o valor do livro. De igual modo, se um psicólogo decidisse medir o QI de uma pessoa através da velocidade com que ela aperta os atacadores dos seus sapatos — e argumentasse que essa medida era mais objectiva e de extraordinária fiabilidade — certamente exigiríamos que se justificasse.
Precisamos de uma psicanálise dos concursos que nos ajude a parar de dissimular e a dar voz às nossas verdadeiras motivações: A multiplicação dos indicadores numéricos nos editais não se deve a quaisquer estudos sobre a sua validade, mas sim ao seu aparente efeito na redução da litigância e conflitualidade que os concursos tendem a gerar. A um nível mais profundo, os indicadores objectivos dão-nos a ilusão de termos resolvido o problema espinhoso de definir o valor do livro, a qualidade da docência, ou o contributo da pesquisa científica.
3) Um dos efeitos destes concursos é promover uma competição pouco saudável. Nos departamentos, compete-se com o colega do lado, mas colabora-se com o colega de outra instituição ou departamento; o primeiro é rival no concurso, o segundo é coautor do nosso artigo. Procuramos cada vez mais redes de colaboração que nos permitam ter o nosso nome em mais artigos e aumentar as chances de termos projectos financiados. De facto, o número médio de co-autores por artigo disparou e praticamente desapareceu o artigo de autor único. Por que será?
4) Outros países fazem diferente. Primeiro, na promoção não há competição entre colegas do departamento; não há jogo de soma zero. Todos os professores de uma mesma categoria podem ser promovidos; também pode ocorrer que nenhum seja promovido. Os critérios são de “mérito absoluto”. Sabem eles, mas nós aparentemente não, que só colaborando com os colegas do mesmo departamento podemos competir com departamentos “rivais”. Segundo, separa-se claramente a promoção da contratação externa (em Portugal estão confundidos). Para contratar, define-se o que se procura (psicólogo do desenvolvimento infantil, por exemplo) o que restringe a pool de candidatos e reduz a sua heterogeneidade. A comparação no seio da mesma área é facilitada.
Haveria muito mais a dizer (por exº., sobre o tipo de docente que estes critérios selecionam), mas fica para um próximo artigo.
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