Uma breve reflexão do momento em que conheci a D. Maria do Céu, residente na Comareira.
De Góis (onde acampei) até à Comareira são cerca de nove quilómetros e uma subida de cerca de 300m de altitude. Demorei quinze minutos de carro. A D. Maria do Céu demorava duas horas a pé. Eu conduzi esse caminho porque quis conhecer a aldeia de xisto. Esta senhora fê-lo a sua vida toda para vender luvas de lã no mercado para alimentar a família. Atrevam-se a falar de “white privilege” à D. Maria do Céu.
Esta senhora de 80 anos ainda se enraivece ao ver as suas plantações dos últimos anos a serem destruídas pelos veados que as eólicas mandaram pela montanha abaixo. Esta senhora, cujos pais viam os seus rebanhos assaltados por lobos, cuja alimentação era à base de castanhas, três porcos por ano, água-mel e a já tão ouvida sardinha a dividir por quatro, rir-se-ia na cara de quem a chamasse de privilegiada só por ser caucasiana.
Bem sei que todos ouvimos estas e outras histórias dos nossos avós sobre como era duro antigamente. Bem sei que está no nosso vocabulário básico que no interior era ainda pior do que o pior do litoral. Bem sei que não estou a dizer nada de novo. No entanto, também bem sei que a passagem do tempo apaga o sofrimento. Este presentismo é uma das coisas que mais se aproxima do vosso “privilégio”.
O trabalho de sol a sol agora chama-se burnout. O racionamento de comida agora chama-se dieta de jejum intermitente. As duas horas a pé pela serra para vender o pouco que se fazia agora chama-se desporto. Não se enganem, estes não são argumentos contra a melhoria da qualidade de vida. Não são argumentos contra a progressão geracional. São argumentos a implorar que não nos esqueçamos do passado.
Se existe “privilégio”, valha o que valha esse conceito, está na pessoa que reclama por não haver soja desidratada nas prateleiras. Não está na cor de pele. Muito menos na cor da pele da D. Maria do Céu da Comareira – avermelhada, queimada pelas horas incontáveis ao sol.
Atrevam-se a falar de “white privilege” à D. Maria do Céu.
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