Vivi em 6 casas diferentes nos últimos 8 anos. Podem não ser números impressionantes o suficiente para quebrar recorde algum, mas são, sem dúvida, capazes de me ter trazido atreladas várias mudanças naquilo que uma casa significa para mim.
Há 8 anos tinha 20 e saía da casa da minha mãe pela primeira vez. Atirava-me de cabeça à vida, romântica e otimista. Montei uma casa com o meu namorado da altura, que calha ser o meu marido de hoje. Cada moldura foi preenchida com atenção. A cor azul das paredes da sala foi cuidadosamente escolhida. Passaram-se semanas e um lar surgiu de onde antes habitavam apenas paredes vazias e novelos de pó. Vivemos naquela casa durante apenas 2 anos, até decidirmos mudar de cidade, de rotina, de vida e, incontornavelmente, de casa também.
Toda a gente que já teve em mãos a tarefa exigente de colocar a vida em caixas, sacos e bagageiras, sabe que é algo que nos consegue revoltar as entranhas de variadas formas. Nunca consegui evitar pensar que cada mudança que eu iniciava, cada casa que eu abandonava, era uma falha que eu colecionava. Estava a mudar porque as coisas não tinham resultado ali. Esvaziava armários, gavetas e divisões que tinha enchido poucos meses antes, na ilusão de que montava uma casa onde iria ser feliz por muito tempo.
Na última noite naquela primeira casa que montei, adormeci a chorar. Lembro-me de já tudo à minha volta estar vazio, de ter ao meu lado apenas um candeeiro com uma lâmpada de luz verde. Sabia que no dia seguinte a minha vida iria mudar e embora nada do que era meu estivesse naquela casa que eu estava prestes a deixar, era ali que me sentia abraçada. Tinha crescido regando a ideia de que eram as nossas coisas e as nossas pessoas que davam forma àquilo a que chamamos de lar, mas lá estava eu, completamente sozinha, numa casa vazia e a sentir que era suposto continuar ali. Não por não querer cumprir as promessas de uma vida diferente numa cidade a 300 km de distância, mas porque abandonar um lar se assemelhou a terminar uma relação com alguém de quem ainda gostava.
As lágrimas saltavam-me dos olhos enquanto eu tentava perceber se as memórias eram capazes de se agarrar às paredes, como fazem as lagartixas. Se era possível que tudo o que vivemos enchesse o ar daquele apartamento apenas, não saindo para nenhum outro lugar. Um aquário bem selado de memórias que permaneceriam enclausuradas feitas almas penadas. Achei que saindo dali, abandonaria também muito do que lá vivi. Aquela casa era um ecossistema perfeito que não sucumbiu mesmo quando lhe arranquei friamente o esqueleto. Mostrou-se de outra forma, deixando-me perceber que afinal eu não sabia nada sobre o que torna uma casa num lar.
Não voltei a sentir nada parecido porque nunca mais montei uma casa, peça a peça, com a dedicação e ingenuidade de alguém que vê a eternidade em todo o lado. Vim do Algarve para Lisboa, viver no epicentro do mercado de arrendamento selvagem, a pagar mais do que cada casa valia, mais do que recebia e a ver-me obrigada a sair quando os senhorios decidiam duplicar a renda ou não passar contrato.
Depressa surgiu a urgência de comprar uma casa. Voltar a ter oportunidade de ter algo realmente meu, onde pudesse pintar paredes de cores várias sem autorização prévia e a repovoar um bloco de betão com as minhas memórias-lagartixa, parecia-me um sonho bom de se realizar.
Mas estava e estou numa Lisboa entregue a uma curadoria a quem importa apenas quem cá está de passagem. Uma Lisboa onde não se fala português nem se ouve fado, em que lojas multinacionais surgem descontroladamente, do tamanho de prédios inteiros onde eu gostaria de morar. Estou numa Lisboa moribunda, que é cada vez menos Lisboa. Vivo numa Lisboa em que ninguém consegue viver, que alastrou esta espécie doença por toda a parte, tornando Portugal no 3.º país do mundo onde é mais caro viver. Queria comprar uma casa, mas vivo em Portugal em 2024. Há mais pessoas a dormir na rua do que casas onde se pode viver.
Despedi-me de demasiados sítios e fechei permanentemente a porta da entrada de muitas moradas que gostaria que fossem minhas ainda, mas tive sempre um teto por cima da cabeça. Por mais que sonhe com mais do que o mínimo, é um privilégio que muitos não têm. Ter a oportunidade de encher um lugar feito de mil tijolos e torná-lo no cenário principal das nossas vivências, no pano de fundo das fotografias que mostraremos aos nossos netos e, sobretudo, num lugar que nos abraça, é, hoje em dia, uma oportunidade para poucos. Raras são as coisas que me revoltam mais que isso.
A minha noção do que é um lar parece-me tantas vezes fútil e despropositada. Sinto-me, como sempre fui, uma privilegiada a querer o extraordinário num país onde o comum é ter pouco ou quase nada. Uma tola a imaginar memórias em forma de répteis para justificar a pouca habilidade de lidar com a mudança e a inabilidade de mudar alguma coisa. Invento um mundo que não existe porque o que nos deram é injusto demais. Queria apenas uma casa minha, que toda a gente pudesse ter uma também e, acima de tudo, que isso não fosse pedir demais.
Pintura de capa por Amadeu de Souza Cardoso
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