“O maior mito é a própria raça humana”

Tempo de leitura: 4 minutos

O maior mito é a própria raça humana[1]

— Anselm Kiefer

A nossa espécie, a humana, por vezes racional, empática e virtuosa, tem construído no seu percurso histórico e cultural uma matriz utópica de evolução civilizacional e emancipação espiritual. Em muitos domínios, colaborativamente e individualmente, tal aspiração tem sido magistralmente alcançada. Não pela maioria. Algumas mulheres e homens que alcançam a excecionalidade da maturidade espiritual, não só no que criam, revelam ou conseguem atingir, socialmente reconhecidos ou no anonimato, deixam como legado o melhor da diferença e da possibilidade de humanidade. A Construção do Humano.

Porém, numa caracterização geral e antropológica, o nível de autossabotagem das civilizações[2] que, conscientes e cíclicas, atingem graus extremos de maldade, destruição, abuso, estratificação e de engano, dificilmente pode ser relativizado ou legitimado pelo que criaram conceptualmente como nobres paradigmas culturais, mesmo que em contraponto com o que há de justo. O tanto que pode haver de bem é manchado pelo mal. Corrompem o seu próprio ideal.

Mundanamente, costuma-se priorizar um olhar sobre o que é bom em detrimento do que é mau, a visão positiva em detrimento da negativa, falar do copo meio cheio no lugar do copo meio vazio. Mas tal como em outros contextos, a polaridade de posições não responde com eficácia e sensatez aos múltiplos desafios com que a contemporaneidade em ferida se apresenta.

Das polaridades extremadas é preciso encontrar pontes e consensos. Das opiniões divergentes é necessário extrair sem preconceitos o mais exequível e ético.

Aos impasses e limitações que o passado não conseguiu resolver na convivência terrestre, não só entre humanos, mas também com as outras espécies e ecossistemas diversos, designadamente na forma como foram e são usurpados, subjugados e explorados, acresce problemas novos, muitos criados por nós.  

Acredito que não é preciso ser nem pessimista, nem otimista, mas realista. Um copo que tem água pela metade, não é menos ou mais, é a quantidade exata que tem. Para desejar um planeta com futuro não basta ser crédulo, é preciso ter coragem para enumerar as causas dos problemas, sem demagogias ou utopias obsoletas. É preciso dar passos em frente com um retrato inicial real, intemporal, da(s) face(s) desnudada(s) da natureza humana.

Partilho da ideia de Oliver Burkeman, que escreveu no The Guardian várias resenhas de livros de autoajuda, ou da psicóloga Gabriele Oettingen, acerca da ineficácia do pensamento positivo por si só, que trata concepções milagrosas, padronizadas para todos/as. É ingénuo quem tem em si e procura muitas certezas, sem a sensatez do questionamento e sem o entendimento tanto da luz, como da sombra.

Numa intenção futurante, interessa cada vez mais a avaliação realista e crua das circunstâncias. Interessa desconstruir o olhar de artifícios e purpurinas estéreis, cegamente crendo que no humano tudo é e nasce bom, designadamente quando passa pelo melhor dos processos e circunstâncias formativas. Defendo o discurso que não evoca só as trevas, a fatalidade, nem o que ilude, infantiliza ou repete-se a iluminar, a esperançar falaciosamente. Na educação, com as crianças e os jovens, essa verdade deve também ser privilegiada numa abordagem realista, mas que possibilite o sonho, o caminho, sem pintar a realidade de cor-de-rosa. 

Na mesma intenção futurante, a atualidade pede-nos também uma visão bem menos antropocêntrica e bem mais holística, compassiva, esbatendo as hierarquias que só alimentam poderes desiguais. É vital incorporar em cada hora, em cada gesto, a nossa interdependência, com tudo e com todos, com o conhecido e o mistério do Mundo. Todos os seres vivos com que coabitamos neste pequeno planeta, por definição ética clara, são legítimas criaturas a ser em vida digna, harmoniosa e plena, com liberdade, espaço e tempo inerente à sua condição.

Na nossa vida pessoal, privada, doméstica, não percamos o frágil, o instintivo, o orgânico, os sentidos e a concretude em detrimento do excessivamente higienizado, estilizado, padronizado, perfumado ou idealizado. Quando as leis humanas falham e não nos orientam, há que fazer a leitura das leis naturais, dos sucos e sulcos, das dinâmicas e vivências das outras espécies, assim como dos ciclos da Terra.

Perante a realidade e a senda da verdade factual, não é digno o fácil cinismo que deixa de semear, nem a atitude de que tudo é maravilhoso, inocente e perdoável. Despertar é dar passos, percebendo em interrogação o tanto que aguentamos ficar cegos, num sonho mal formulado.


[1] Wenders, W. (Diretor). (2023). Anselm [Documentário 3D]. HanWay Films.
[2] Historiador e filósofo israelita, Yuval Noah Harari evoca a espécie humana como “autodestrutiva” no seu mais recente livro: Harari, Y. N. (2024, setembro). Nexus. História breve das Redes de Informação da Idade da Pedra à inteligência artificial (M. Romeira, Trad.). Elsinore.

Partilha este artigo:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.