Após nos apercebermos que utilizei o vocábulo recanto, um lugar oculto, sítio escuso e recôndito, um verdadeiro escaninho, para me referir ao país onde, em plena Grande Depressão, um historiador e escritor cunhou o conceito de ‘american dream1‘, é possível que suscite nos leitores choque e perplexidade. No entanto, os Estados Unidos da América são tratados e retratados como tal: um recanto que se apresenta como mais estranho do que o próprio paraíso. Tendo em conta que ninguém o conheceu e foi capaz de voltar para relatar o que viu, excetuando aqueles profetas que, ocasionalmente, escrevem livros sobre isso, é aparentemente paradoxal poder haver um local mais estranho do que o paraíso. Todavia, é esta a premissa do cineasta Jim Jarmusch quando decide lançar mãos à obra no sentido de edificar o filme Stranger than Paradise (1984), resultado de vários anos de dedicação.
Jarmusch, “A New American Director”, citação de como se apresenta no ‘trailer’ deste “New American Film”, desempenhava funções de assistente de outro importante nome do cinema, Nicholas Ray, contacto este que lhe permitiu chegar até Wim Wenders. Relevante esta ligação, porque há material que Wenders lhe emprestou e que Jarmusch utilizou nesta longa-metragem. É, ainda, importante realçar o facto de Stranger than Paradise (1984) ter começado por ser uma curta-metragem, que chegou mesmo a ser apresentada em 1982, devido a um financiamento deficitário, vindo a ser, mais tarde, desenvolvido o filme na sua maior extensão. Há quem se possa questionar: onde é possível ver a tal curta-metragem? Basta considerar de modo independente a primeira de três partes deste filme. Ponto positivo, facilitado fica o nosso trabalho de divisão dos três atos.
“The New World” em Nova Iorque, “One Year Later” em Cleveland e, finalmente, “Paradise” na Flórida. Uma viagem que atualmente de carro levaria mais de um dia para completar. Mas é simbólica esta nota porque, como defenderei adiante, este filme versa sobretudo acerca da solidão e da distância física e emocional, o sentimento mais profundo ligado à incapacidade de pertença face a um determinado local ou grupo social. Acompanhamos Willie, Eddie e Eva no seu vagueio e é um filme frio, triste, e apático, apesar de se encontrar carregado de ‘deadpan humor.’ A primeira aparição desse artifício é quando Willie apresenta à recém-chegada Eva o conceito de ‘TV dinner’, que não é nada mais do que uma refeição pré-preparada passível de ser comida enquanto se vê televisão, algo a que já nos habituámos.
Willie vive sozinho, reduziu ao máximo as suas interações sociais, convivendo praticamente apenas com Eddie, vê televisão e ganha a vida a apostar em corridas de cavalos e em jogos de cartas. É húngaro e veio para os Estados Unidos com a sua tia Lottie, muito provavelmente, apesar de recusar afincadamente essa sua origem. E é aqui que reside o nosso ponto de partida: a recusa das raízes como ablação de grande parte da nossa essência. O reflexo da procura pela nossa identidade, que tarda sempre por chegar. Seja por vergonha ou por medo de retaliações, creio que é transversal a omissão propositada de determinados aspetos da nossa história. Filiação menos letrada ou com opiniões mais esotéricas, por exemplo. Willie recusa tanto ser húngaro que exige à sua tia que fale em inglês, nunca revelou ao seu amigo Eddie a sua nacionalidade e ostraciza, inicialmente, a sua prima Eva quando esta vem de Budapeste para Nova Iorque passar uns dias.
Três cidades diferentes e, em Cleveland, Eddie resume o sentimento comum a todas as localizações: “You know, it’s funny. You come someplace new and everything looks just the same”. Reflito sobre a sequência de Cleveland, na medida que, num determinado ponto da sua história, foi a segunda maior cidade húngara, só atrás de Budapeste2. Enormes foram as vagas migratórias a partir desta nação para o estado de Ohio, sobretudo para a região próxima ao lago Erie, neste filme também visitado, contrastando o branco infinito das águas congeladas com as roupagens negras dos protagonistas; numa era em que já se podia filmar a cores, rodar a preto e branco constitui uma clara escolha artística e, acima de tudo, na minha opinião, uma derivação estética. É, talvez, uma tentativa de reconciliação com essas origens aquilo que motiva Willie a aceitar deslocar-se a Cleveland para visitar a prima Eva, já a morar com a tia enquanto trabalhava num restaurante.
“I Put a Spell on You”, de Screamin’ Jay Hawkins, perpassa o filme e é, a meu ver, intencional. Para além do feitiço lançado aos espetadores, encanto que nos faz ficar colados ao ecrã, há ainda outra poção, a desilusão. Willie emigrou para os EUA com a provável intenção de aproveitar a terra das oportunidades, procurando fazer vingar o sonho americano. No entanto, deparou-se com sucessivas desilusões, como o seu estilo de vida descrito acima o comprova. Considero que o argumento que Jarmusch pretendeu vincar se relaciona com a implacável desilusão que, de forma invariável, encontraremos sempre que tentarmos recusar uma parte de nós, das nossas origens ou das nossas opiniões. Razão pela qual nos limitamos e deixamos de aproveitar aquilo que o mundo tem para nos dar, visto que vivemos permanentemente assombrados com a possibilidade de a porta do velho armário se abrir, deixando cair os reclusos esqueletos.
Em termos abstratos, ninguém pode ser bom em todas as áreas da vida; possuiremos sempre pequenos embaraços que rezamos para que nunca sejam descobertos e, acima de tudo, revelados. Pode custar-nos não sermos capazes de os esconder eficazmente, mas esse é um dos custos da vida. O que é bom sai caro.
- Wills, Matthew. (May 18, 2015). “James Truslow Adams: Dreaming up the American Dream”. ↩︎
- History of the Hungarian Heritage Museum in Cleveland, Ohio. ↩︎
Pintura de capa por Bosch
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