Gaslight (1944): o modo como o argumento criou um neologismo.

Tempo de leitura: 5 minutos

Meia-Luz (1944), em português, realizado por George Cukor, protagonizado pela dupla composta por Ingrid Bergman e Charles Boyer, foi lançado, nos Estados Unidos da América, no dia 14 de maio de 1944. Desde aí até aos dias de hoje, volvidos mais de 80 anos, é inegável a importância impactante deste filme na cultura popular mundial. Curioso e também conturbado o modo como este filme viu crescer rapidamente a sua popularidade, não à meia-luz, mas em pleno brilho do grande ecrã. Luminosidade total, do ponto de vista metafórico e até literal, recaiu sobre a prestação da inquestionável Ingrid Bergman, tendo, com este filme, arrecadado o Oscar de Melhor Atriz Principal, em 1945. Curioso e conturbado porque a versão americana resultou de uma guerra comercial. Surpreendida e motivada pelo sucesso da peça e do filme britânico de 1940, a Metro-Goldwyn-Mayer comprou os direitos, a fim de possuir legitimidade para desenvolver um remake, mas com uma importante condição, ou cláusula, caso queiramos aplicar o jargão judicial: todas as cópias existentes do primeiro filme deveriam ser destruídas,[1] até o próprio negativo.

Escusado será dizer que, ainda durante os dias de hoje, é possível apreciar a versão britânica, realizada por Thorold Dickinson. Gaslighting refere-se, então, a um modo de manipulação cujo objetivo é fazer a vítima questionar a sua própria perceção da realidade, ou eventualmente a sua saúde mental [2]. É, portanto, um coloquialismo que surge precisamente devido ao título do filme que aqui se discute. O tempo da ação situa-se no final dos anos 1800, sendo a iluminação obtida através da combustão do gás, daí o epíteto. É crucial este dado, já que participa em cenas fundamentais do filme e reflete o modus operandi do abusador Gregory Anton (ou Sergis Bauer?) perante o seu alvo Paula Alquist. É em torno deste (disfuncional) casal que a narrativa se desenvolve. Não pretendo estragar a experiência a quem ainda não assistiu o filme, mas não é desperdício vê-lo após conhecer estes factos. Gaslighting é um conceito amiúde usado por profissionais da autoajuda, cuja legitimidade, por vezes, se questiona, para descrever uma dinâmica que pode ocorrer em relações interpessoais (românticas ou parentais) ou mesmo em relações laborais. Envolve duas partes: o gaslighter, que apresenta uma narrativa forjada (e falsa) com o objetivo de manipular, e o gaslighted, que procura resistir no sentido de manter a sua autonomia. Este modo de manipulação é normalmente eficaz apenas quando há uma dinâmica de poder desigual, mais uma vez, podendo ser real ou forjada. [3]

No entanto, a meu ver, é particularmente mais profícuo considerar este conceito, o seu uso e significado, no seio da psicologia e psiquiatria, devidamente fundamentadas em evidência científica. Deste modo, a American Psychological Association, homóloga da American Psychiatric Association, responsável pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, considera que, apesar de a palavra gaslighting (referindo-se ao comportamento supra descrito) ser frequentemente usada em literatura clínica, não se deve deixar de considerar como um coloquialismo, apenas e só. [4]

Libertando-me da legitimidade, ou falta dela, em termos do devido uso desta nomenclatura, procuro focar-me nas nefastas consequências deste tipo de manipulação. Pode oscilar entre condescendência e compaixão, contudo é certo que é difícil alguém libertar-se destas amarras; ouvem-se relatos assustadores, não só pela gravidade absoluta de cada ato, mas também pela duração a que se pode estender. É, portanto, um círculo vicioso. Visível é este efeito durante o filme, sendo evidente a dissonância que as atitudes de Gregory geram em Paula Alquist, cada vez mais alienada da realidade. Nota-se uma evolução que parte da dúvida até ao momento trágico em que já não há crítica suficiente para questionar a realidade – esta passou a ser aquilo que o abusador pretende que seja. Ninguém questiona o nosso caráter eminentemente social, enquanto espécie. No entanto, é também fácil de aceitar a seguinte premissa: somos cada vez mais sociais! Quer em número, quer em intensidade; porque, na minha opinião, sabendo nós de que dispomos de menos tempo para investir calmamente em cada relação, imprimimos mais esforço e dedicação em cada uma delas. Aumentando o número de interações, é também mais fácil encontrar factos manipuláveis, isto é, passíveis de serem alterados, neste caso, a fim de obter algum benefício. Depois de a vítima estar agarrada, difícil é de se libertar; os sentimentos de impotência, fraqueza, incapacidade de acreditar na sua própria memória… Tudo isto deve gerar um ambiente altamente perigoso, na medida em que facilmente se procura aliviar estas emoções junto de quem as criou. O/a abusador/a sabe exatamente como acalmar alguém alienado, na medida em que isso é necessário para estabelecer confiança. Após este acrescento, com mais confiança a legitimar o próximo ato, a vítima acreditará. E outro ato é perpetrado – o círculo encerra-se. Para quem vê de fora, quer na vida real, quer no filme, é gritante a presença de uma austera e gigante red flag a drapejar violentamente num poste. Quem sofre na pele, sente o vento, vê o poste, mas falta-lhe o alcance para observar a bandeira… e, sobretudo, a sua cor.


[1] BFI Screenonline: Dickinson, Thorold (1903–1984) Biography. Disponível em: http://www.screenonline.org.uk/people/id/531286/
[2] Definition of gaslight (Entry 2 of 2)”. Merriam Webster. Disponível em: https://www.merriam-webster.com/dictionary/gaslight
[3] Portnow, Kathryn E. (1996). Dialogues of doubt: the psychology of self-doubt and emotional gaslighting in adult women and men (EdD). Cambridge, MA: Harvard Graduate School of Education. OCLC 36674740. ProQuest 619244657. Disponível em: https://www.proquest.com/openview/a487582b11ed34445a7e2406831861cf/1?pq-origsite=gscholar&cbl=18750&diss=y
[4] APA Dictionary of Psychology, Gaslight. Disponível em: https://dictionary.apa.org/gaslight

Ricardo Silva

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.