Sou tantas vezes engolida pela maternidade. Engolida, devorada e regurgitada depois. Amassada e despida, cuspida algures e obrigada a viver tudo como se nada tivesse acontecido. A erguer o corpo pesado e dolorido, como se fosse suposto andar por aí a sentir que perdi uma batalha. A vestir um par de calças que fez do chão morada porque guardá-la no armário deixou de ser prioridade. A abrir a porta de casa, carregada com mil e um sacos e mochilas, os peluches que não podem ficar para trás, a garrafa de água e o lanchinho para quando a fome aparecer. A ir às compras com uma lista para fingir que tenho a vida organizada. A dormir menos do que preciso, a deitar-me mais cedo do que quero. A perder amigos por falta de comparência, de empatia e de compreensão. Minha ou deles, já nem sei.
Ser mãe era o meu sonho maior e mais antigo. A minha infância foi passada a fingir que tinha idade para ter filhos. A enfiar roupas, que tirava da cómoda, dentro das minhas camisolas, moldando o volume como os oleiros fazem com o barro, para que a minha barriga de grávida fosse o mais convincente possível. Fingia dar à luz, dar de mamar, embalar e adormecer. Nada na minha vida foi tão certo como a vontade de ser mãe. Não sei se por vontade inata ou por condicionamentos do mundo e da sociedade. Os meus brinquedos eram quase todos bebés porque eu gostava, ou eu gostava porque era o que me ofereciam? Porque tinham a embalagem rosa da menina que era suposto eu ser, para enfim me tornar na mulher que a sociedade queria que eu fosse. O que é que de mim é realmente meu e o que é que me foi moldado à revelia? Não tive dúvidas, não questionei. Sabia qual o caminho. Ser mãe era ser feliz. Até que o meu filho nasceu e trouxe o sonho para o plano da realidade.
Fui engolida e regurgitada quando nada na maternidade foi como eu pensava que seria, ao perceber que foi mais difícil do que toda a gente me fez acreditar. Fui agredida pela vida no momento em que percebi que tornavam a maternidade num qualquer poema bonito de se ler, que a transformaram num adorno belo à vida, como um arranjo de flores que traz beleza e perfume a uma casa, mas que, afinal, murcha e morre dias depois. A maternidade engoliu-me ao vir murcha de raiz até mim, enganando-me e escondendo-se nas idealizações irrealistas que eu tinha sem saber – até me entrar em casa e eu não ter como a expulsar. O sonho que eu sempre sonhara tinha enfim chegado. E eu, mais triste do que alguma vez fui. Engolida, regurgitada, despida e culpada.
O que se faz a um sonho quando se percebe que nos pode ter vindo parar às mãos por engano? Não fosse eu ateia e teria toda a certeza de que Deus se teria enganado durante o serão em que se dedicou a atribuir os sonhos de vida a cada um de nós. Se era o que eu mais queria, por que é que o esforço era constante? Por que é que as saudades da vida antes de ser mãe se conseguiam, tantas vezes, sobrepor à magia de assistir e participar na criação de uma pessoa? ‘’Deus enganou-se. Deus não existe, mas Deus enganou-se’’ – pensei eu tantas vezes.
Acordo, ainda, com o peso do dia que falta viver a empurrar-me para o chão. Acordo a suspirar e a tentar convencer-me de que vou sobreviver. A relembrar-me que já sobrevivi a cem por cento dos dias em que achei que não iria conseguir. A pensar que haverá um dia que será o último, mas que não será a maternidade a derrotar-me. Esforçando-me, consigo perceber que é a ser mãe que encontro uma força que nunca julguei ter dentro de mim. Para amar tanto uma pessoa que me virou a vida do avesso, tornando-a numa coisa tão agridoce e, por vezes, contraditória, só posso ter uma capacidade infinita de amar. Este amor mantém-me inteira quando me sinto fragmentada, frágil e quase a quebrar. Quebrei muitas vezes, mas continuo aqui.
Ainda não descobri se este sonho era só meu ou se foi a sociedade que me enganou de forma a que eu acreditasse que sim, mas sei que o sonho chegou, com todas as suas particularidades. Provavelmente o problema está em acharmos que nos sonhos tudo é bom, quando nada do que existe é só bom. Sinto-me engolida e regurgitada sempre que me custa ser mãe, mas todos os dias sou mãe e sobrevivo. Esse é o superpoder das mães.
Pintura de capa por Stanisław Wyspiański
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