“Vem aí uma das primeiras guerras que Ana Paula Martins vai ter de gerir.
Médicos exigem que ministra retire poder aos fisioterapeutas”.
- CNN Portugal [1]
Diz um artigo da CNN [1], de 16 de abril: “Manuel Pizarro criou unidades privadas de fisioterapia, terapia da fala e terapia ocupacional totalmente independentes”, o que o Bastonário Carlos Cortes adiantou que seria um “grave problema de usurpação de funções” que pode “colocar em risco a segurança e a qualidade dos cuidados prestados” aos doentes. Ora, como é óbvio fui trabalhar bastante irritada após estas declarações, que têm tanto de arrogância como de desconhecimento.
Por vezes gostava que as pessoas vissem como se estrutura um curso de Fisioterapia. Duvido que saibam que a massagem é um grão de areia do curso, que há uma quantidade de cadeiras focadas na avaliação do utente, cadeiras que nos permitem avaliar exames imagiológicos (sim, sozinhos), que aprendemos a prescrever exercício e outras técnicas de tratamento, etc. Isto para, depois de acabarmos o curso, irmos para uma clínica convencionada, onde há mais oportunidades de trabalho, abrir uma folha com um conjunto de técnicas para aplicar (grande parte das vezes desatualizadas cientificamente)? Os meus pais pagaram o curso para eu pensar, porque ler eu já sei há muito tempo! É completamente possível trabalhar em conjunto, de igual para igual. O que acontece atualmente é que há uma hierarquia: essa hierarquia não permite à população ver as capacidades de um fisioterapeuta. O médico tudo sabe, ou tudo usurpa?
A verdade é que bons e maus profissionais existem em qualquer profissão, mas o que mais acontece são casos em que a fisiatria apenas atrasa, como descrevi, em outro artigo “O Ombro da Dona Maria”[2]. Com a arrogância que alguém lhes ensina e a sociedade a ver a palavra médica como total soberana, por mais que lutemos para mostrar o que a evidência cientifica prova, Portugal inteiro fecha os olhos. Por exemplo, no dia 15 de maio, o Deputado da Assembleia da República e Ex-Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, numa aula aberta na Universidade Católica, defendeu que o acesso facilitado aos ginásios não devia ser uma medida de promoção da saúde, mas sim, haver espaço para as pessoas caminharem, mas nunca correr. Isto porque a corrida faz mal às articulações. Eu podia escrever um artigo só sobre o quanto isto está errado, sobre os benefícios do treino de força do ponto de vista da prevenção, saúde e reabilitação, mas terá de ficar para a próxima. Junta-se mais uma barbaridade completamente falsa às tantas que a sociedade come (e.g., não apanhes pesos do chão com a coluna fletida porque estraga). São estas pessoas que nos representam no Parlamento, não se esqueçam. Porém, sejamos razoáveis, há quem continue a acompanhar o avanço da ciência e não estagnou nos anos 70.
Se há um profissional que é capaz de avaliar e executar (i.e., fisioterapeuta), por que é que, em todos os casos, tem de passar por outro que apenas avalia? Usando o exemplo do mundo do desporto, em que o fisioterapeuta acompanha a equipa, e é o primeiro contacto, e o médico atua como segundo, em determinadas situações que justifiquem: o fisioterapeuta faz a avaliação e gere o caso, às vezes sozinho, outras vezes como de igual para igual para com um médico, em que a partilha é a chave para o sucesso. Que eu saiba, num ambiente em que o corpo é o instrumento de trabalho, a performance/eficácia é importante e há tanta pressão para o atleta estar saudável, o método utilizado é aquele que o Bastonário da Ordem dos Médicos considera pouco seguro?
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde)[3], a definição de Fisioterapia é a seguinte:
“Physiotherapists assess, plan and implement rehabilitative programs that improve or restore human motor functions, maximize movement ability, relieve pain syndromes, and treat or prevent physical challenges associated with injuries, diseases and other impairments”.
Quem está a usurpar funções, afinal? Há gabinetes de Fisioterapia, fisioterapeutas que trabalham ao domicílio, entre outros, a trabalhar de forma independente, sem comprometer a saúde de ninguém. Muito pelo contrário: os resultados são mais rápidos. O que baixa a qualidade do serviço é mantermos moldes arcaicos e pessoas arcaicas a tomar decisões. Ou o fisioterapeuta desiste da profissão, ou desiste de lutar pelas próprias competências, o que faz com que a qualidade do serviço baixe significativamente. E acreditem, vejo isto a acontecer todos os dias.
Para terminar: Senhor Bastonário, eu sei que os médicos estudam muito. Mas não são deuses. Eu também estudei bastante, menos anos, é certo, mas especializei-me numa área. Dos outros saberes do corpo humano, aos quais não sei as coisas tão aprofundadamente, não opino. Gostava de viver num país que evolui, e que não vive nestas hierarquias e disputas do tempo da outra senhora, em que os médicos dominam tudo, com o seu ar altivo, usurpando funções aos outros.
[1] CNN Portugal. (16 de abril de 2024). Vem aí uma das primeiras guerras que Ana Paula Martins vai ter de gerir. Médicos exigem que ministra retire poder aos fisioterapeutas. CNN Portugal. Obtido de https://cnnportugal.iol.pt/fisioterapeutas/ordem-dos-medicos/vem-ai-uma-das-primeiras-guerras-que-ana-paula-martins-vai-ter-de-gerir-medicos-exigem-que-ministra-retire-poder-aos-fisioterapeutas/20240416/66169414d34e0498921f961e [2] Reconhecer o Padrão (24 de setembro de 2024). O Ombro da Dona Maria. Reconhecer o Padrão. https://reconheceropadrao.pt/2023/09/24/o-ombro-da-dona-maria/ [3] Indicator Metadata Registry details. (n.d.). https://www.who.int/data/gho/indicator-metadata-registry/imr-details/3408
Pintura de capa por Thomas Eakins
Partilha este artigo:
Deixe um comentário