A inflação é um fenómeno económico – e político – que ganhou centralidade, nos últimos anos, na vida da maioria da população. No entanto, o debate sobre as suas causas (ou causadores) basicamente não existiu, para prejuízo de todos nós.
Parece-me que toda a gente terá notado o recente episódio de inflação. A partir de julho de 2021, o Índice de Preços no Consumidor (IPC) disparou; em 2022, registrou uma variação média anual de 7,8% em Portugal. Como resposta, o Banco Central Europeu (BCE) aumentou por dez vezes as taxas de juro, de – 0,5% até 4%, só parando em setembro de 2023.
Importa, portanto, refletir sobre as causas da inflação específicas a este episódio recente e sobre a produção de políticas neste âmbito pelo governo português e, de forma mais decisiva, pelo BCE. O que originou o aumento da inflação? Quais foram os princípios e os resultados da subida das taxas de juro? Que outras respostas políticas eram possíveis? Posso adiantar as minhas posições: o empobrecimento não era inevitável e foi uma opção política do BCE. Os lucros extraordinários (à falta de melhor palavra) saem diretamente do bolso e do trabalho das portuguesas e dos portugueses.
As causas da inflação estiveram, inicialmente, relacionadas a constrangimentos de oferta de matérias-primas e de energia, o que foi agravado, posteriormente, com a invasão russa da Ucrânia. No entanto, após esse período inicial (e aproveitando-se dele), o principal fator que provocou a inflação foi o aumento das margens de lucro, não só no mercado nacional, mas também no internacional. Ou seja, o problema está na oferta, e não na procura. Esta análise foi confirmada por um working paper [1] do Fundo Monetário Internacional (FMI), completamente insuspeito de ser de esquerda, socialista, anti-mercado, ou o que seja. No entanto, economistas tidos como de esquerda já vinham alertando para essa realidade bastante antes da publicação deste paper. É a chamada greedflation (a inflação gerada pela ganância). Entretanto, a proposta do FMI continua a ser de uma austeridade mascarada. Obviamente, nunca seria qualquer medida que pendesse para as pessoas de baixo, para quem vive do seu trabalho ou trabalhou toda uma vida.
No entanto, a atuação do BCE não seguiu nunca esta análise. Seguiu outra, deturpada, em favor das classes altas. Este tratou, desde sempre, o presente episódio de inflação como se fosse um episódio semelhante ao que aconteceu na década de 70. A solução pensada foi proceder ao esmagamento da procura por meio do aumento das taxas de juro e deixar intocadas as margens de lucro. O resultado foi o empobrecimento quase generalizado, uma perda de salário e pensão real para quase todas as pessoas. Os salários reais recuaram 2,6% em 2022, tendo a produtividade aumentado 4,5%. Ou seja, os trabalhadores produziram mais nos seus empregos, mas o seu vencimento só lhes permitiu viver pior (e alguém beneficiou com isso). O peso do trabalho no PIB[2] recuou 2,4 pontos percentuais, de 55,7%, em 2021, para 53,3%, em 2022. Simultaneamente, para uma inflação que chegava a 7,8% de média anual para 2022, a despesa pública (orçamentada) cresceu apenas 3,5%, diminuindo não apenas em termos reais, como até em nominais, no caso das prestações sociais (- 0,2%). Ou seja, uma autêntica austeridade sorrateira, de mansinho, que o governo de maioria absoluta do PS aplicou em Portugal.
Em março de 2024, na comparação com março de 2023, o aumento do IPC foi de 2,3%. Ou seja, a inflação recuou e estamos em valores próximos aos 2% anuais considerados aceitáveis pela União Europeia. Então, por que razão não descem as taxas de juros? A resposta mais simples: o BCE não quer. Uma resposta mais completa, segundo o BCE, é a existência de “pressões internas” associadas ao mercado de trabalho. Isto, num contexto de diminuição de salários reais, é uma grande falsidade. Na verdade, as taxas de juro pouco tiveram que ver com a diminuição da inflação. Foi o restabelecimento das cadeias de distribuição que a fez diminuir em boa parte. Uma boa prova é o caso do Japão, que teve um episódio de inflação semelhante ao europeu (incluindo a sua redução), mantendo, ao longo do mesmo, taxas de juro negativas, até bem recentemente.
Quando alguns partidos políticos propunham medidas para travar a inflação, como controlo de preços, ou taxação de lucros extraordinários (também denominados excessivos ou excedentários), faziam-no com base na vida cada vez mais sofrida das pessoas, mas tinham a evidência científica do seu lado. Estas propostas foram apelidadas automaticamente de radicais e extremistas. O mero facto de se desafiar timidamente a ordem neoliberal imposta foi o suficiente para isso. Os resultados ficaram bem visíveis. Em 2023, os lucros da EDP aumentaram 40%; Jerónimo Martins, 28,2%; Galp, 13%; Sonae, 10,5%. Com a subida das taxas de juro, também a banca privada beneficiou. Foram 3.153 milhões de euros, 8,6 milhões por dia, um aumento brutal de 81,9% em relação a 2022. Já os lucros da Caixa Geral de Depósitos, banco público, aumentaram 53%. Este contexto segue-se a um ano de 2022 em que o total de lucros da banca portuguesa já havia aumentado 50% e superava os 5 milhões por dia. Um contexto dramático de concentração de riqueza, de rentismo. Demais é demais, ao ponto de uma notícia[3] da insuspeita CNN Portugal, de março de 2023, começar com as frases “É um pássaro? É um avião? Não, são os lucros da banca a voarem”. Eu acrescentaria “do seu bolso”.
O banco público, quando ao serviço de políticas neoliberais, é público só em nome. Portugal foi o país da União Europeia onde a prestação ao banco de um empréstimo à habitação mais subiu[4]. É preciso fazer face a esta realidade. Portugal poderia colocar o seu banco público ao serviço do seu povo. Baixando os juros da Caixa, aliviar-se-iam os empréstimos do próprio banco. Ocorreria, de seguida, uma migração de empréstimos de outros bancos para a Caixa, forçando todo o mercado a reagir. Os lucros da Caixa do ano de 2023 tornam possível este processo. Porque não acontece? Existem regras europeias que não o permitem (isto é, um ataque à capacidade soberana portuguesa de defender as condições de vida do seu próprio povo), e existia um governo do PS sem coragem política para enfrentar esta manifesta injustiça, comportando-se como bom aluno de Bruxelas.
Portanto, o estranho caso da inflação não é, afinal, tão estranho assim. É só a continuação da luta de classes invertida a que o neoliberalismo nos sujeita – o constante ataque às classes trabalhadoras por parte das instituições financeiras internacionais, que comandam os estados. O padrão da transferência de rendimento do trabalho para o capital mantém-se intocado.
[1] International Monetary Fund. https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2023/06/23/Euro-Area-Inflation-after-the-Pandemic-and-Energy-Shock-Import-Prices-Profits-and-Wages-534837?cid=bl-com-WPIEA2023131=
[2] Le Monde Diplomatique, Edição Portuguesa. https://pt.mondediplo.com/2022/11/errata.html
[3] CNN Portugal. https://cnnportugal.iol.pt/banca/lucros/passaro-aviao-sao-os-lucros-da-banca-a-voarem-mais-de-2-000-milhoes-em-2022/20230303/6401c1650cf2cf9224fba834
[4] Eco, Sapo. https://eco.sapo.pt/2024/04/15/portugal-teve-maior-aumento-do-custo-dos-emprestimos-a-habitacao-apos-subida-de-juros-do-bce/
Pintura de capa por Pieter Aertsen
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