Tempo de leitura: 6 minutos

Fui criada por duas mulheres. Tive duas mães, sendo uma delas a minha avó. Não porque alguém nesta trindade tenha tido hipótese de escolha, já que eu fui uma de tantas crianças que cresceram sem pai. A minha mãe viu-se obrigada à posição de mãe solo e a minha avó lá estava para tentar preencher o lugar em falta.

Cresci a achar que era a única na minha turma, na minha escola e talvez me tenha, eventualmente, passado pela cabeça a possibilidade de ser a única no mundo a crescer sem pai. Pelo menos, a crescer sem pai por ele não fazer questão de crescer comigo. Sabia de colegas cujo pai tinha falecido e compadecia-me com a situação, porque para mim nunca houve nada pior que a morte. Mas ter um pai que existia e que eu não sabia onde estava, era uma morte pequenina todos os dias.

Nunca me faltou nada, pelo contrário. O lugar em negativo que ele deixou foi preenchido por tanta coisa boa e preciosa, que hoje, já adulta, consigo ver que foi mais uma benesse que uma maldição. Mas em criança, quando repentinamente me perguntavam por que é que o meu pai nunca me ia buscar à escola, percebia que me faltava algo. A presença dele, sim. Mas acima de tudo, respostas. E esse vazio das respostas, que não me saíam porque eu não as conhecia, assombrava-me de quando em quando. Cada pergunta, a que eu não era capaz de responder, era um rombo na ideia do regresso dele. Era um confronto com tudo o que eu não tinha, nunca tivera e que dificilmente viria a ter. O vulto imaginário do meu pai foi buscar-me várias vezes. Imaginava-o ali e como seria ser recebida pelo seu abraço depois de um dia cansativo de aulas. Mas lá surgiam estas perguntas e o vulto esbatia-se, até não restar nada além da certeza de que eu era e seria sempre uma pessoa sem pai. A falta de respostas que explicassem o porquê de tudo, era o que cimentava as certezas de que a minha situação não se iria alterar. Ele era e seria sempre uma ausência.

Cresci a achar que nada, nisto tudo, me traumatizou nem deixou marcas significativas. Dizia simplesmente: vivo com a minha mãe e a minha avó. Era simples para mim. Alternava os presentes do Dia da Mãe: num ano para uma, noutro ano para a outra. E os presentes do Dia do Pai, que era obrigada a fazer, iam todos para uma prateleira empoeirada na estante dos meus livros, na esperança distante, e a cada ano mais diluída, de lhes poder dar todos um dia. ‘Spoiler alert’: não dei.

Tem-se falado muito na família tradicional. Há quem defenda, com unhas e dentes, que não a podemos deixar morrer. Que a tradicionalidade nos acrescenta algo de bom. Que progredir e aceitar famílias diferentes irá estragar os alicerces da Humanidade e levar-nos para um buraco qualquer, cheio de espinhos e desgraça. Eu não sei o que é uma família tradicional. Ou melhor, sei. Porque fui aprendendo ao longo dos anos.

Fui olhando para o lado, falando com pessoas, nutrindo amizades profundas e descobri que, ao contrário do que eu acreditava em criança, eu não era a única cujo pai tinha decidido cessar funções. Éramos muitos. Éramos demasiados. E continuamos a ser. Em determinada altura comecei a ter mesmo a sensação de que éramos mais que os restantes. E percebi que a família tradicional, mais vezes do que devia, porque uma só já é demais, é feita desta ausência. A família tradicional, feita de uma mãe solo cujo parceiro a abandonou, é aceite. Faz parte dos infortúnios da vida. Foi azar, que pena. A família tradicional feita de filhos que não sabem dar um abraço ao pai porque ele nunca lhes deu um abraço a eles, é aceite. É normal nos homens, eles são mais desapegados. A família tradicional onde toda a gente se cala e encolhe quando o homem chega a casa, onde o medo impera porque já houve ou há violência, é aceite. Porque ‘’entre marido e mulher, não se mete a colher’’ e as crianças que lidem com isso.

Percebi que a família tradicional era quase sempre tudo aquilo que eu não queria – e quase sempre tudo aquilo que eu continuo a não querer. Fui criada por duas mulheres e, supostamente, isso é um atentado à tradicionalidade. Mas, na minha opinião, poucas coisas foram tão repetidas na história de tanta gente. Mulheres que ficam a preencher os lugares vazios que os homens deixaram, a almofadar o ambiente de pedra que eles criaram e a fingir que é suposto o mundo ser assim. Não é.

A tradicionalidade está-se a perder e ainda bem. Porque ter crescido com duas mães foi a melhor coisa que me podia ter acontecido, já que as únicas coisas que o meu pai foi capaz de me ensinar foi a viver sem ele e a desconfiar dos outros homens todos.

A minha família tradicional não foi tradicional por sermos todas mulheres. E na opinião deste grupo questionável de pessoas bolorentas, isso é condenável. Vi duas mulheres a levarem o peso da decisão de um único homem às costas, a multiplicarem-se infinitamente para que tudo fluísse e eu não acabasse a sentir que me faltava um membro.  Não me lembro de ter ouvido, durante toda a minha infância e adolescência, ninguém suficientemente indignado com o que tantos homens são capazes de fazer (ou não fazer) a uma família. Era um dado adquirido, um aspeto quase biológico, como ter a voz grossa e mais pelos no corpo. Para a sociedade, um homem abandonar foi sempre compreensível. Duas mulheres ficarem passou a ser uma ameaça a algo que já estava, à partida, moribundo. E eu não consigo olhar para isto sem uma revolta profunda, por sentir que ser mulher é estar sempre a perder.

A minha pergunta é: qual é a solução? Continuar a apregoar uma coisa que já se viu que não resulta, ou melhor dizendo, provavelmente nem existe, ou tentar resolver o problema, responsabilizando quem não se responsabiliza, e aceitar que existem vários moldes de possíveis famílias felizes?

A minha mãe foi mãe e pai. A minha avó foi avó e mãe. E eu fui eu, com o que estas peculiaridades todas fizeram de mim. Não sei se preferiria ter tido um pai presente ou não. Mas sei, por experiência própria, que ser feliz com uma família atípica não só é possível como, muitas vezes, é mais provável.

Partilha este artigo:

Um comentário a “A armadilha da família tradicional”

  1. Avatar de Ana Alcaide

    Bravo!!!!! Muito bom

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.