Ao longo da última semana, muita tinta correu sobre a alteração do logótipo do Governo da República Portuguesa. Textos de opinião foram escritos, especialistas foram ouvidos e, como é costume, comentadores comentaram. Nunca o ‘design’ português teve tanto tempo de antena. Será escusado dizer que a primeira medida do XXIV Governo Constitucional foi (visualmente) marcante.
Foi uma promessa eleitoral cumprida em tempo recorde, mas essa prontidão não deixou tempo para reflexões. Montenegro cedeu e, como primeira medida, outorgou este presente às forças conservadoras da direita portuguesa e aos comentários de café. As forças conservadoras da direita portuguesa e as mesas de café pouco devem conhecer sobre comunicação, novos formatos ou até a diferença entre uma bandeira e um logótipo. Porém, não é o papel destas ter estes conhecimentos e preocupações, agora o XXIV Governo Constitucional tem a obrigação de ser mais capaz ou pelo menos de subdelegar a responsabilidade de saber melhor.
É preciso ter alguma calma para analisar esta questão, e ir para além dos gostos pessoais e preferências estéticas. Olhemos então para a diferença entre bandeira e logótipo, a mensagem, os novos formatos de comunicação e o apego aos símbolos nacionais:
Os ‘memes’ começaram a surgir no final do ano 2023 (coincidência ou não incidiu na altura que foram anunciadas eleições antecipadas), e colocavam em causa o valor; citavam opiniões como: “eu fazia isso no ‘paint’”; e comparavam o logótipo da república portuguesa a bandeiras de outros países. Por momentos, pareceu que tinham rasgado a bandeira e difamado o hino, que os símbolos nacionais tinham sido atirados borda fora para dar lugar a dois quadrados e um círculo. O logótipo do governo não é a bandeira, a bandeira não é o logótipo do governo. O logótipo é um símbolo cuja função é representar uma marca ou instituição. Basta uma pequena pesquisa, pelas páginas de vários governos, para compreender que não é regra os governos dos países usarem a bandeira e os seus detalhes como os logos que os representam. Pode-se também fazer este exercício com as autarquias, onde o logótipo do município não é equivalente às bandeiras dos municípios.
Um detalhe não tão debatido é a designação que passou de “Governo de Portugal” para “República Portuguesa”, nos anos de governação de Costa, e que Montenegro manteve. Há quem argumente que é uma apropriação de um desígnio global, de uma apropriação do Estado pelo executivo. Pode ser também visto como uma noção de coletividade, de inclusão. Porém, isso parece não ser uma questão que incomode o novo Governo. Agora, o que dificilmente pode ser questionável são os valores basilares na criação do logótipo, que concebe uma representação “inclusiva, plural e laica”, conforme descrito pelo XXIII Governo Constitucional. Vendê-los como algo radicalizado ou como agenda política não é só grotesco, é uma ignorância total da Constituição da República de 1976.
É de reforçar que o logo recuperado não tem enquadramento nas plataformas ‘online’ e nas redes sociais, não é dinâmico, não tem um manual de normas que lhe permita adaptar-se às plataformas digitais. É estático, não funciona hoje. E essa foi a premissa inicial da alteração para o desenvolvido por Eduardo Aires. Eduardo Aires não criou um desenho, criou sim normas de comunicação que permitem ditar como o governo português comunica nos diversos formatos, plataformas e contextos. Desde fontes, a animações, a materiais ‘online’ e ‘offline’. É um projeto completo que merece ser visitado. É necessário um projeto completo para dar resposta a todas estas necessidades.
O apego aos símbolos nacionais também ficou notório nas várias discussões que se estenderam sobre este tema. Durão Barroso chegou a afirmar num discurso, em altura de eleições: “Se não se identificam com o nosso brasão de armas, não são verdadeiramente portugueses”. O que significa isto? Que implicações tem este tipo de discurso vinculado pela direita portuguesa? Que consequências tem a cultura ‘anti-woke’ em Portugal fazer desta a sua batalha? Eventualmente, vamos ter de refletir sobre isso. E permitam-me esta confissão, pessoalmente não desgosto da nossa bandeira, gosto da bandeira da República Portuguesa pelo que significa, pelos valores que fizeram o 5 de outubro. Mas chegou a hora de debatermos se Portugal não pode ir para além da reconquista cristã e dos descobrimentos. Estes dois marcos fizeram a nossa história, mas passado quase mil anos de existência temos de pensar de que queremos que seja feito o nosso futuro.
O XXIV Governo Constitucional querer mudar o logótipo? Isso temos de dar de barato, é compreensível (até certo ponto) que queiram uma imagem que vá de encontro às suas preferências, que queiram uma marca distintiva. Convém, porém, que seja capaz de viver em 2024, à luz dos paradigmas da comunicação e plataformas de difusão de conteúdos da atualidade. Não vale a pena fingir que os tempos não mudaram, porque mudaram e muito desde o virar do século, que foi quando a componente visual do logótipo reposto foi criada. Até os ‘anti-woke’ têm redes sociais e sabem usá-las. Convém que o Governo de Portugal as saiba usar também.
P.S. Caso se queira prenunciar contra esta alteração, pode subscrever à petição online: “Contra a Reversão da Nova Identidade Visual do Governo de Portugal”.
Pintura de capa por Wassily Kandinsky
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