Lembro-me de estar, na minha adolescência, sentada na relva com o meu grupo de amigos e de, a certa altura, o ar se ter enchido de desejos frenéticos de crescer. Ouvia-os a todos a expressar o quanto queriam que o tempo passasse para poderem ir para a escola dos grandes, o quanto queriam ser livres, aventureiros, adultos. Lembro-me de levar com o sol na cara enquanto arrancava roboticamente a relva imediatamente à minha frente e pensar: eu só quero continuar aqui.
Acho que desde pequena me prendi na noção de finitude e me senti deslocada do mundo rápido, apressado e frenético que me rodeava. Aprendi a ver com algum desdém, confesso, a forma como todos à minha volta se enchiam de afazeres e se dedicavam demasiado ao trabalho. Em como estavam constantemente à espera do próximo fim-de-semana, das próximas férias, ou do próximo ano para poderem ser realmente felizes. Essa visão do mundo e das pessoas persegue-me até hoje.
Eu sempre quis estar onde estava. Talvez pela noção claustrofóbica de que o futuro se torna sempre presente, nunca me senti atraída por ele. Pelo contrário, sempre me repeliu e assustou. Como uma figura abstrata e difusa, mais alta que prédios a vir constantemente na minha direção e eu sempre sem conseguir correr para outro lado. Uma espécie de monstro dos livros de fantasia, daqueles impossíveis de derrotar, que assombram e apodrecem árvores, animais e reinos inteiros.
Sempre me senti aflita com a ideia de não conseguir que o tempo parasse. Não sei se conscientemente sempre tive noção disso, mas sei que nunca quis crescer depressa. Nunca quis acelerar o que não dava para ser acelerado. Nunca quis o que poderia ter mais do que o que tinha. Fingia que era mãe com os meus nenucos e chegava-me. Fingia que era dona de uma papelaria e reutilizar manuais escolares de anos anteriores servia completamente o propósito. Andava na minha trotinete elétrica como se fosse uma mota e fingia que os candeeiros de rua da minha casa eram os semáforos. Tudo isso sempre me chegou. Nunca quis crescer para ter bebés a sério, uma mota grande, ou ser dona de um negócio.
Tive desde sempre a tendência, hábito, ou superstição de me despedir das coisas antes delas irem embora. De usar os olhos como ferramenta para tentar cristalizar tudo o que pudesse na minha memória. Lembro-me, porque ainda o faço, de estar em momentos felizes a fazer o esforço hercúleo de absorver cada gotinha do que se passava. De olhar para cada rosto, cada ruga de expressão, cada bordado de cada toalha de mesa, cada tilintar de talheres em jantares de amigos, cada ruído branco pintado pelo excesso de conversas numa sala. De me sentir embalada, enternecida, feliz, mas sempre, sempre triste. Analisando tudo, como se saísse de mim, com a certeza de que aquilo um dia não voltaria a acontecer. E a verdade é que existirá sempre a última vez de tudo. E que nunca nenhuma entidade tem a amabilidade de nos avisar quando será, para que possamos preparar o coração. E isso para mim, nunca será passível de aceitação.
Talvez por esta dificuldade em aceitar que a vida é em sentido único, sempre em direção ao fim, arranjei o mecanismo de defesa de acreditar que um dia seria capaz de viajar no tempo, por mais que a Ciência diga que tal não é possível, nem nunca será. Quando o sentimento desesperador de que algo fazia permanentemente parte do passado me assolava, lá vinha outro pensamento teimoso e iludido: não te preocupes, hão-de inventar uma forma de lá voltares. Sempre foi uma peculiar e irreal forma de lidar com este meu fantasma. Uma esperança incondicional na Ciência. E continuo à espera que o consigam inventar. Puseram um carro no espaço, o mundo no telemóvel e aviões de toneladas a voar, porque é que aceder presencialmente ao passado há-de ser tão complicado?
Volto àquele relvado vezes e vezes sem conta. Volto àquele relvado sempre que vejo uma criança a tentar ser mais adulta do que é. Sempre que vejo os adolescentes de hoje e lhes noto uma qualquer vergonha em ter a idade que têm. Miúdas demasiado mulheres, rapazes demasiado homens, pessoas demasiado aborrecidas de simplesmente estarem. A mocidade e a infância a escorregarem-lhes pelos dedos. A demora do tempo a passar a ser acelerada por estímulos vindos de toda a parte. A contemplação a ser substituída pelo entretenimento infinito, pela insatisfação infinita, pela confiança infinita num futuro que é desconhecido e incerto.
Naquele dia, naquele relvado, foi provavelmente a primeira vez que tive a noção clara de que o presente me era mais querido que o bicho assustador a que chamavam futuro. Senti-me abandonada por ser a única a querer estar ali, a gostar das coisas como elas eram e a romantizar tudo o que se passava, como muitas vezes me sinto abandonada hoje também. Olhava-os nos olhos e pensava para dentro o quão bonito era aquele relvado com todos eles ali em cima. Que num ano ou dois seríamos substituídos por outros adolescentes irrequietos a ansiar uma outra série de coisas. Que os amava, que amava tudo e queria que as coisas continuassem como estavam. Não continuaram. Porque nada permanece para sempre. Espero um dia fazer as pazes com isso. Por enquanto ainda não consigo e há uma parte egoísta de mim que deseja que ninguém consiga também.
Pintura de capa por James Guthrie
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