Vivi toda a minha vida com um corpo marginalizado. Tenho, desde nascença, uma deficiência motora permanente, crónica, que, como grande parte das deficiências, afeta o crescimento e desenvolvimento corporal. Tal como muitas outras pessoas, cresci sem ver o meu corpo representado em lado nenhum: não o via na televisão, não o via em filmes, não o via em campanhas publicitárias de moda, não o via descrito em livros. Enfim, eram até poucas as vezes que o via na rua, em pessoas que me rodeavam no dia a dia. Era natural que a minha relação com o meu corpo não fosse a melhor – afinal, nada que eu experienciava levava-me a encará-lo como um corpo normal. Como eu podia gostar dele?
Foi já a meio da adolescência que comecei a ver os primeiros movimentos de aceitação corporal. A mensagem que, lentamente, começou a espalhar-se era a de que todos os corpos são bonitos, independentemente da cor, da forma, do tamanho. Felizmente, pensava, está quase a chegar a minha vez de ouvir que também o meu corpo é bonito. Esse momento, no entanto, não chegou. Enquanto outras pessoas conseguiram começar a ver beleza no seu corpo, eu não consegui. Porque as mensagens de body positivity ainda não eram para mim. Ninguém dizia que uma caixa torácica consideravelmente larga num corpo pequeno era bonita. Ninguém dizia que um pescoço desalinhado do tronco era bonito. Ninguém dizia que uma anca deslocada era bonita. Para mim, o meu corpo ainda era anormal, atrofiado, enfim, o oposto de bonito. A minha relação com o meu corpo continuava pouco saudável. Eu pensava que seria impossível achar o meu corpo bonito e, consequentemente, gostar de mim. Hoje, vejo claramente qual foi o meu erro: pensar que precisava de achar o meu corpo bonito para gostar dele.
Ao mesmo tempo que renegava o meu corpo, admirava-o. Pode não ser bonito, mas já viram a força que tem? Foi este corpo frágil que resistiu a dezenas de pneumonias na minha infância, lutando contra a debilidade do sistema imunitário e deixando-me como nova, vezes sem conta. Os músculos atrofiados e as costelas fora do sítio são o reflexo de constantes mudanças e adaptações que ele fez para eu poder estar confortável na minha cadeira de rodas. O meu corpo começou a ser, para mim, um símbolo de resistência. Era claro que ele gostava de mim, que trabalhava incansavelmente para mim, por mim. Após me aperceber disto tudo, não foi preciso muito esforço para, inevitavelmente, começar a gostar do meu corpo. É verdade que o meu corpo falha-me muitas vezes, principalmente, enquanto mulher com deficiência. A minha mobilidade diminui todos os dias. Os meus músculos ficam mais presos, mas não vou usar isso contra o meu corpo porque ele não o usa contra mim.
Recentemente descobri que esta experiência transformativa que vivi começava a generalizar-se, dando origem ao movimento de body neutrality. Este movimento resume-se ao ato de adotar uma posição neutra em relação ao nosso corpo, tanto física quanto emocionalmente. O nosso corpo é o veículo por meio do qual vivemos. É um canal, uma plataforma. O meio físico que temos à nossa disposição para experienciar o mundo que nos rodeia, para nos expressarmos, para nos relacionarmos com os outros. E isto vai muito além da aparência física. É importante gostarmos do nosso corpo por aquilo que ele faz, não pela forma como se parece.
Se hoje me perguntarem se gosto do meu corpo, a resposta é, indubitavelmente, sim. E se me perguntarem se o acho bonito, não tenho bem a certeza da resposta. Ainda hoje não sei se não valorizo a aparência ou se o acho bonito porque reconheço valor nele – esta última opção começa a assemelhar-se cada vez mais à verdade. Entretanto, no fundo, não importa, porque ambas me satisfazem, ambas são perfeitamente aceitáveis. Ainda que todos os mecanismos de aceitação corporal sejam válidos e a escolha de um deles seja uma decisão individual, é sempre saudável desprendermo-nos do peso que a aparência tem na definição da nossa autoestima. Não tens de achar o teu corpo bonito para gostares dele. Para gostares de ti. Porque és muito mais do que um corpo.
Pintura de capa por Sandro Botticelli
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