Na ordem do dia, temos mais um caso de violência doméstica, mas este tem uma especificidade, um procurador que faz juízos de valor.
Gostava de começar por uma frase proferida pela vítima: “No início não achava que era violência, achava era que ele perdia a noção das coisas”, sendo que a mesma acrescentou que o agressor dava murros nas paredes, batia com as portas, e partia e estragava alguns dos seus objetos e roupas. Portanto, logo aqui podemos observar o início do ciclo da violência. Qualquer mulher apaixonada ignora estes pequenos sinais com o objetivo de prolongar a relação e cumprir o sonho de um amor perfeito, onde há rosas, carinho e jantares à luz das velas. A relação dura e a violência arrasta-se, até a vítima não aguentar mais e abrir mão de tudo para ter paz.
Os casos de violência doméstica passam por um processo legal, onde a vítima fala repetidamente do caso, revive memórias, e mostra a sua vulnerabilidade a desconhecidos. Neste caso, a vítima, além de relembrar tudo, depara-se com um profissional da justiça que quebra o artigo n.º 7 do código de conduta dos magistrados do Ministério Público, que refere que estes “(…) devem manter uma atitude de cortesia no trato e rigor na informação que prestam aos cidadãos (…) manter uma atitude de rigor, bom senso e ponderação”. Este profissional profere as seguintes palavras: “Pode-se admitir, em tese, que um determinado homem com uma determinada mulher é o pior dos cônjuges, mas um pai formoso”. Ou seja, ele culpabiliza a vítima e neutraliza o contexto de violência, esquecendo-se de que a filha deste casal também obteve o estatuto de vítima.
Agora, eu pergunto-me: como é que um marido violento pode ser um pai formoso? A partir do momento em que o agressor é violento com a filha, é impossível que ele seja um pai formoso. Segundo a vítima, ele abanava e gritava com a filha, que, com medo dele, escondia-se atrás da mãe. Não é o primeiro caso de violência doméstica em que os filhos também sofrem os maus-tratos e qualquer profissional que lide com este tipo de crime sabe que quem vive neste clima acaba por sofrer conjuntamente, seja direta ou indiretamente, por isso não vejo justificação para a afirmação descabida do procurador.
Com o tempo, tenho vindo a aperceber-me da falta de empatia e sensibilidade dos profissionais que lidam com estes crimes. Percebo que é um trabalho extremamente exaustivo, tanto a nível emocional como psicológico, mas em nenhum momento se justifica proferir juízos de valor sobre o caso que temos à frente, é contra a ética profissional.
Além de que a vítima, quando nos chega às mãos, vem muito vulnerável e ansiosa. Nós devemos mostrar empatia e apoio, dar-lhe alguma segurança para ela nos contar o que se passa e assim a conseguirmos ajudar. Este profissional fez totalmente o oposto. Colaborou para o sentimento de culpa, para o sentimento de arrependimento, para a vergonha em expor o seu caso e para a descredibilização do seu relato.
Os casos de violência doméstica demoram algum tempo até ficarem resolvidos, o que acaba por contribuir para a revitimação. Este caso, em específico, aconteceu há três anos, e volta a ser assunto do dia porque a vítima está a lutar pela guarda da filha. Obviamente que acarreta instabilidade emocional, dúvidas, e traz muitas memórias daquilo que foi a violência vivida, e com toda a certeza que uma vítima, quando está a expor a sua situação de novo, não espera encontrar alguém que expresse as suas ideias e preconceitos acerca da violência doméstica e das próprias vítimas.
Por estar no terreno a lidar com casos de violência doméstica, o sentimento de culpa que as vítimas sentem é frustrante porque é difícil mostrar-lhes que a culpa não foi delas e que o comportamento violento do agressor não tem justificação. Em nenhum momento a trabalhar com a vítima se deve enaltecer o agressor. O foco é na vítima e naquilo que ela sente e pensa.
Com este caso, quero alertar todas as pessoas, sejam elas mulheres ou homens, a não aceitarem o mínimo numa relação. Valorizem-se, sejam a vossa prioridade. A violência, muitas vezes, começa com pequenos sinais como, por exemplo, a proibição de levar uma peça de roupa ou de estar com certos amigos, e por isso é importante estar atento aos comportamentos da pessoa que temos ao nosso lado. Não deixem de fazer a vossa vida em função de alguém e não deixem que uma pessoa vos tire a vossa individualidade.
Para terminar deixo algumas indicações que acho importantes no trabalho com as vítimas: adquirir competências emocionais, cumprir o código de ética a que nos comprometemos enquanto profissionais, deixar de lado as opiniões e ideias pessoais que vamos adquirindo com o tempo a trabalhar com as vítimas, e, a mais importante de todas, não levar connosco o trabalho para casa, isto é, não vivermos em função dos casos que atendemos, podendo tornar-se muito exaustivo e comprometer o nosso desempenho laboral.
Deixo o número da linha de apoio à vítima caso alguém esteja ou saiba que está a passar por uma situação de violência: 116 006.
Ana Maia
Imagem de capa: Wellcome Trust, sobre licença Creative Commons
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