Episódios de violência, processos de divórcio e adoção são apenas alguns exemplos que implicam o contacto de crianças e jovens com o sistema judicial português. Procedimentos que deveriam primar pela celeridade e ser fonte de segurança para as crianças e jovens envolvidos, conduzem a uma instabilidade emocional, caracterizada pelo sofrimento e angústia dos mesmos, especialmente quando se trata de casos de abuso sexual e maus-tratos.
Primeiramente, convém fazer uma distinção entre abuso sexual e violação, uma vez que, apesar de ambos se tratarem de crimes de natureza sexual, constituem conceitos jurídicos distintos. O abuso sexual abrange a prática sexual com crianças e jovens menores de 14 anos, mesmo que a vítima tenha sido, ou não, obrigada à consumação de tal ato. Ao abuso sexual é aplicada uma moldura penal entre 1 a 8 anos de prisão. Por outro lado, a violação espelha igualmente uma prática de natureza sexual, mas que envolve o uso de força física ou outras formas de coação (ameaça, chantagem, uso de substâncias como o álcool e drogas, entre outras) para que o/a agressor/a consiga alcançar a violência sexual propriamente dita (exemplo: penetração vaginal, anal, sexo oral etc). Ao crime de violação pode ser aplicada uma pena até 10 anos de prisão, mas, como é do conhecimento geral, dificilmente são respeitados estes intervalos temporais.
Os dados mais recentes divulgados pela Polícia Judiciária indicam que, nos últimos 10 anos, foram investigados mais de 30.000 crimes sexuais cujas vítimas tinham idades compreendidas entre os 8 e os 17 anos. Não fugindo à regra daquilo que se tem verificado, mesmo em contexto internacional, os perfis de agressores são, na sua maioria (96‰ dos casos), indivíduos do sexo masculino e que possuem um vínculo familiar próximo com a vítima.
Portugal tem investido em campanhas de prevenção e sensibilização para este tipo de problemática que assola cada vez mais as famílias portuguesas, independentemente do seu nível socioeconómico, como anteriormente se associava, erradamente, a famílias de origens mais humildes. Contudo a questão permanece: se existe prevenção, porque é que Portugal continua a ser um país cujas taxas de crimes sexuais a crianças e jovens têm vindo a aumentar significativamente?
A resposta não está associada ao aumento do número de crimes sexuais, como a população em geral possa pensar, mas sim à consciencialização das vítimas, que as inunda de uma responsabilidade moral em apresentar queixa com o intuito de criminalizar os autores destes crimes horrendos, na esperança de não cometerem novamente tais atrocidades.
A mediatização dos crimes sexuais iniciou-se com maior evidência no processo Casa Pia, com a existência de aproximadamente 32 vítimas, crianças e jovens, de abuso sexual. A partir desse momento as denúncias por crimes sexuais dispararam em Portugal, a um ritmo nunca antes observado, e porquê? Porque as vítimas já não se sentiam sozinhas e viam os seus traumas projetados na vida destas crianças e jovens, entretanto adultos, que tiveram a coragem de os denunciar.
No entanto, existe uma agravante quando se trata de crimes sexuais. O Estado de Direito Português, na sua teoria, prima pelo superior interesse da criança, mas, na prática, existem demoras assustadoras no desenrolar dos processos judiciais, e uma atribuição de liberdade absurda e quase imediata destes/as agressores/as.
A justificação dada para a liberdade concedida a estes predadores sexuais é sustentada tanto pelo facto de os estabelecimentos prisionais estarem lotados, como pela falta de credibilidade dada aos testemunhos, como quem diz falta de provas. Alguém considera o quão agonizante pode ser para uma testemunha reviver tal barbárie? Está na hora da justiça portuguesa não apenas aumentar as molduras penais, mas, sobretudo, acompanhar adequadamente as vítimas que têm a sua vida sentenciada por um evento traumático na flor da idade.
Mais recentemente, a celeuma em torno dos abusos sexuais na igreja católica fez reacender a temática, alertando para o impacto que a mesma exerce no desenvolvimento cognitivo das crianças e jovens, e na condução de uma vida adulta livre de traumas, ansiedade, angústias, e sofrimentos causados por figuras vistas como “representantes de Deus na Terra”. O grupo VITA corrobora essa mesma tese, de que, para além da gravidade, já característica deste tipo de crime, o facto dos alegados agressores serem figuras da igreja associadas a ideais de proteção e devoção, vêm agravar o impacto vivenciado por estas infâncias e juventudes perdidas.O sistema de proteção de crianças e jovens em risco deveria ser o primeiro a lutar pelos interesses individuais destas crianças e jovens, mas, perante estas ligeirezas judiciais, é evidente que o povo questiona a sua legitimidade, recorrendo, por vezes, “à justiça pelas próprias mãos”. Comparar a sentença que as vítimas carregam até ao final da sua vida emocionalmente destroçada às indemnizações ou penas aplicadas aos/às agressores/as sexuais é extremamente insultuoso e, como tal, é imperativo uma reforma destas molduras penais.
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