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Talvez poucos imaginassem, aquando dos eventos de 7 de Outubro, que o equilíbrio de poder no Levante pudesse ter-se alterado tão radicalmente. Para a maioria dos observadores, o Hamas surgia como uma débil milícia terrorista. As suas capacidades pareciam limitadas: o grupo não dispunha de melhor que armamentos obsoletos ou artesanais; as suas forças eram amadoras e precariamente treinadas. Confinado à exígua Faixa de Gaza, cercado e vigiado em permanência por um dos mais sofisticados aparelhos militares e de informações do mundo, o Hamas não insinuava qualquer ameaça. As lideranças políticas e militares americanas pareciam francamente convictas disto. Dias antes dos acontecimentos, o Conselheiro de Segurança Nacional de Joe Biden, Jack Sullivan, escrevia na Foreign Affairs que “há já muitas décadas que o Médio Oriente não estava tão calmo” e que “conseguimos [os EUA] desescalar a crise em Gaza e retomar a diplomacia directa entre israelitas e palestinianos após anos de ausência (…)”. Parecer-nos-á assustador que uma das mais relevantes figuras do aparelho diplomático e militar norte-americano pudesse ser tão ingénuo – ou estar tão mal informado – sobre acontecimentos de tão grande transcendência. E, todavia, assim foi.

A ofensiva do Hamas surge num contexto de particular fragilidade ocidental. A guerra ucraniana converteu-se em objecto de histeria colectiva; os Estados Unidos e respectivos aliados entregaram ao projecto de derrota militar da Rússia a totalidade da sua atenção e dos seus recursos. A propaganda repetiu sem freio os delírios da classe política: anunciou na Rússia o cansaço da opinião pública, enquanto eram os ocidentais quem perdia o fôlego; jurava o esgotamento as capacidades militares de Moscovo, enquanto, como hoje sabemos, eram os arsenais ocidentais que eram esvaziados. Quase dois anos de mentira despudorada terminaram numa surpresa dramática: a contra-ofensiva de Kiev, que aqui se dizia capaz de cortar as linhas russas como faca quente em manteiga, terminou em desastre e humilhação; e a guerra, que nos disseram estar a debilitar e a exaurir os russos, esteve, afinal, a debilitar e a exaurir-nos a nós. Teria o Hamas arriscado defrontar assim Israel se não conhecesse a incapacidade dos ocidentais em carregar o peso avassalador de duas guerras simultâneas em regiões distantes do globo? Talvez não.

Naturalmente, as lideranças do Hamas não são as únicas a prestar atenção quando, uma e outra vez, as chefias militares da NATO anunciam a exaustão dos paióis ocidentais. A China de Xi Jinping também lê jornais. Afundando-se no pântano ucraniano, os Estados ocidentais determinaram a sua própria vulnerabilidade: mesmo admitindo cenários optimistas de crescimento de produção industrial militar, todas as estimativas indicam que levará anos – e, em alguns casos, décadas – até que os nossos arsenais recuperem até níveis pré-guerra. E, se a janela de oportunidade existe para um coup de main chinês na Formosa, recomenda-nos a mais chã sensatez que levemos a sério o cenário.

Em The Rise and Fall of the Great Powers, Paul Kennedy analisa os factores que conduzem à decadência das superpotências. Embora a obra date de 1987, quando a América ascendia perante uma URSS estagnada e autofágica, Kennedy detectava já aí tendências profundas que, acreditava, conduziriam, a prazo, à perda de protagonismo pelos Estados Unidos. A sua tese era de que a força aparentemente ilimitada da América era ela mesma semente de desastres; que a diversidade e multiplicidade de interesses a defender por Washington acabariam por mostrar-se demasiado pesadas para os recursos ao seu dispor. Kennedy propunha um caminho: uma política mais prudente, que hierarquizasse objectivos, evitasse trocar o longo-prazo pelas ambições do presente e fugisse a tudo o que pudesse conduzir à aceleração do declínio americano. Hoje, em 2023, a necessidade de realinhamento entre os recursos e as vontades dos Estados Unidos parecerá evidente para a maioria. Muito do nosso futuro próximo dependerá da capacidade da classe política americana em compreendê-la.

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