A literacia em Saúde é quase tão baixa quanto a literacia financeira. A verdade é que a própria informação chega ao utente em forma de “opiniões”.
Faço repouso? Uso canadianas? Tomo anti-inflamatórios? Apresento dois casos verídicos, com nomes fictícios.
Vamos falar do caso do João, 14 anos. O João pratica uma modalidade coletiva e, num jogo de domingo, torce o pé. O pé inchou muito, ficou negro, uma bela “batata”. As dores eram terríveis, portanto, a mãe levou-o ao hospital. Descobriu-se que não havia fratura, ia estar uma semana de canadianas, mais três sem praticar a atividade, depois, estava livre (o que foi proposto foram quatro semanas de inatividade e depois começar, sem qualquer tipo de preparação, com a intensidade máxima? Fantástico!). O João, a partir da semana de paragem, pôs mãos à obra, pesquisou exercícios de fortalecimento, mobilidade, até corrida, que, no caso da sua modalidade, fazia sentido. O João é um atleta acima da média no que toca a literacia em saúde, para não falar que se responsabilizou pelo próprio processo de reabilitação, o que é uma lufada de ar fresco para um fisioterapeuta. É libertador quando se encontra alguém assim: que procura ajuda, que o guiem, mas que não façam por ele, o que ele pode muito bem fazer. Quando chegou à fisioterapia, estava sem qualquer dor, qualquer limitação de amplitude de movimentos, mesmos níveis de força equiparando com o lado oposto, sem dificuldade no salto ou absorção de impacto, etc. Depois de ser exposto a testes de velocidade, resistência, mudanças de direção, entres outros exercícios de retorno à atividade, começou a treinar de forma condicionada (fazendo exercícios que ainda não levassem ao contacto físico entre atletas). Como correu bem, no dia seguinte, treinou normalmente, e nunca mais voltou ao gabinete da fisioterapia.
Agora, vamos falar do caso do José, com a mesma idade. O José torceu o pé, com semelhante gravidade, a praticar a mesma modalidade. Não foi ao hospital, apenas tomou anti-inflamatórios, e esteve em repouso durante uma semana. Quando foi à fisioterapia, tinha dor ao andar, e em todos os movimentos possíveis. Aquela foi a semana zero, de um processo de reabilitação de três semanas, ou seja, quatro semanas de paragem. Os anti-inflamatórios, pensaram os pais, são de toma óbvia, porque se o problema é inflamação, temos de a combater… Coisa que não podia estar mais errada. Refereciando o British Journal Of Sports Medicine:
Soft tissue injuries just need PEACE & LOVE
Os processos de inflamação são necessários para a reabilitação. É necessário controlar ligeiramente, para diminuir os sintomas de dor, rubor ou calor, de forma à pessoa não estar tão desconfortável. Se os impedirmos, a região não vai ter o seu tempo de “sarar”. Para não falar do erro que é não dar o mínimo de movimento à estrutura, enfraquecendo a musculatura da região. Mas, agora, apresento um ‘plot twist’: e o gelo? Não é anti-inflamatório? É, sim. No entanto, como é aplicado localmente, e de forma externa, funciona mais como um analgésico. Colocando na balança, ganhamos mais em expor a este analgésico (com propriedades anti-inflamatórias), do que em não expor. A reabilitação é um processo mais complexo do que aparenta.
O João e o José, por acaso, estão num clube com acesso ao fisioterapeuta. Pelo menos, em questões mais graves. Porém, há clubes em que isso não acontece, ainda por cima em idades tão jovens.
A verdade é que, por vezes, há uma certa obsessão em querer saber o que é, especificamente, através de exames de imagiologia. Grande parte das vezes não é preciso fazer, por exemplo, raio-x, porque não está nada partido. Se for uma fratura, há testes físicos a descartar. Mesmo em situações que existe e não é considerada, o processo de reabilitação tem tendência a ter um desenvolvimento anormal, numa fase precoce. No caso do João, mesmo com a reação que teve, não era necessário submeter a raio-x, mas entende-se a preocupação dos pais. Contudo, às vezes, há lesões simples que apenas precisam de seguir o processo de reabilitação. No fundo, e algo que muitas pessoas têm dificuldade em compreender, é que a reabilitação (e, por vezes, outras áreas de saúde, das quais não falo porque só experienciei como utente) é feita na base da criação de hipóteses: segue-se a “mais certa”, depois da avaliação física e anamnese, podendo haver situações muito ambíguas e casos mais complicados de chegar a um diagnóstico, algumas ambiguidades de sintomas dentro do mesmo, o que não influencia o tempo nem o processo de reabilitação.
Quanto às técnicas aplicadas na fase de tratamento, e tendo em conta a literacia em saúde da população em geral, pode ser confuso, ou até frustrante, ter tantas formas de abordagem diferentes. Nem todos os profissionais de saúde têm a mesma experiência, formação académica, contacto com os mesmos estudos científicos, ou o mesmo ambiente de trabalho. Assim, aproveito para frisar que falo de fisioterapeutas com curso superior, não artistas que aprenderam a fazer massagem.
Imaginemos que o João tinha ido logo à fisioterapia, sem exames, e o fisioterapeuta começava o tratamento. O João apresentava dor e um inchaço muito grande. O fisioterapeuta poderia começar o trabalho de drenagem e diminuição de dor. Há um conjunto de testes físicos que o profissional poderia fazer para descartar a hipótese de fratura. Caso desse positivo, seria logo encaminhado, caso desse negativo, mas o fisioterapeuta considerasse que havia algum viés naquela avaliação, seria igualmente encaminhado, para saber se há fratura ou não. Dando negativo, descarta-se a fratura e o João iniciaria tratamento, sem ir a mais lado algum, a não ser que o processo de reabilitação apresentasse uma trajetória muito anormal, sabendo que os processos de reabilitação e a sintomatologia, mais uma vez, são mais complexos do que a população imagina. Aqui apresenta-se mais vantagens de um fisioterapeuta como profissional de primeiro contacto: avaliação, menos tempo perdido e menos congestão de serviços de saúde. Porém, só nestas situações de âmbito desportivo é que é possível, tendo em conta que o primeiro contacto é do fisioterapeuta e só depois do médico, em casos necessários. Fora deste formato, e como o sistema está construído, não se permite que o profissional de primeiro contacto (médico) tenha tempo para fazer exames físicos.
Não há milagres. Não é possível ter cinco a dez minutos com o utente e examinar com precisão… E aqui volto a fazer alusão às clínicas com convenção com o Serviço Nacional de Saúde. O sistema está feito para que sejam “avaliadas” um número máximo de pessoas. Tendo em conta o pouco tempo, mais vale enviar para raio-x, o que faz algum sentido em populações envelhecidas, tendo em conta as quedas. Será também um ato de desresponsabilização? Facilitismo? Cansaço? Insistência de utentes que acham que precisam mesmo de um exame? De facto, as pessoas ficam mais descansadas. Há sempre aquele comentário de “o médico nem um raio-x me passou”, porque se criou esta espécie de comportamento compulsivo de fazer exames atrás de exames, semelhante a um vício, nas cabeças das populações, desvalorizando o exame físico e o toque (atenção que, o exame físico pode acarretar alguns vieses). De facto, é bem mais fácil mandar fazer um exame, tanto porque não é preciso sair do computador, e as pessoas pensam que é um profissional preocupado e atencioso que os presenteiam com o que desejam: a validação concreta do próprio sofrimento.
Desde que haja controlo de sintomas, nos casos acima descritos, evolução no sentido da diminuição da dor, tanto no dia a dia, como nos exercícios, a reabilitação está a ter um bom desenvolvimento, porque a fisioterapia tem como objetivo principal ser funcional. No entanto, o que é ser funcional? A meu ver, passa por ser-se capaz de executar as suas atividades do dia a dia, sem limitações, sejam elas quais forem, que a pessoa seja um membro capaz e socialmente integrado e, para isso, temos de começar por diminuir o inchaço, dor, limitações de força e/ou mobilidade, etc, dentro dos limites da pessoa, que podem variar bastante. Portanto, é importante passar o processo avaliativo, saber com o que é que se está a lidar e por que é que há protocolos a seguir na reabilitação. Porém, se a pessoa melhora no sentido holístico e se os sintomas estão controlados num intervalo de tempo razoável, o objetivo está a ser cumprido.
Há, obviamente, lesões que precisam de ser enviadas para outros profissionais e em que são necessários exames complementares, nem que seja para confirmar o que é e saber a gravidade (por exemplo, o tamanho de uma rotura muscular), mas caso não seja, não vale a pena estar a envolver tanta gente.
Pintura de capa por Rembrandt
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