Correndo o risco de ser mais uma pessoa a apontar o dedo ao Serviço Nacional de Saúde, permitam-me dar uma perspectiva diferente.
Todos sabemos que são necessárias mais vagas para médicos e enfermeiros, porque sinceramente, são só estes profissionais que a comunicação social conhece. Os outros, serão apenas técnicos? Muitos portugueses ainda têm dúvida se muitas profissões exigem cursos superiores, se estes valem a pena sequer, visto que é só preciso carregar num botão e fazer massagens. Enquanto Fisioterapeuta, anseio pelo momento em que a minha profissão seja valorizada, em que a Fisioterapia seja executada por um Fisioterapeuta exclusivamente, e não seja considerada um conjunto de técnicas que qualquer pessoa sem as habilitações devidas possa pôr em prática.
O problema é que, mesmo com mais vagas para médicos, é um sistema autodestrutivo. Vou dar um exemplo do que se passa na Fisioterapia, que envolva o SNS:
Pensemos na dona Maria. A dona Maria apresenta queixas físicas à sua médica de família, que acha por bem que esta faça algumas sessões de Fisioterapia. Encaminha para uma clínica com acordo com o SNS, e a Dona Maria, espera mais umas semanas, ou até um mês, para uma consulta de Fisiatria. Tendo a consulta, espera mais uma semana, e faz as 15 sessões que se passa a toda a gente, após uma consulta de 5 a 10 minutos. Após as 15 sessões, faz uma consulta de reavaliação, com o médico fisiatra, em que 90% das vezes a continuidade das sessões é dada apenas por métodos subjetivos (“quer continuar, ou não?”). Depois disto? O médico dá continuidade, a uma pessoa que viu uma vez, há um mês atrás, para que a Dona Maria pedir uma credencial à sua médica de família, que, ao ver aquilo, aceita e prossegue com a autorização para a Maria fazer mais 15 sessões. Por acaso a Maria tem médica de família, e entende-se bem com telemóveis, tendo a possibilidade de ter a credencial no dia seguinte e apresentar à clínica. Se não, seria mais tempo, perdida em papéis. A Maria tem “omalgia”, ou seja, um diagnóstico pouquíssimo especifico, mas que o fisioterapeuta percebe que é algo muscular. Foi-lhe dito que era muito tempo a cortar alimentos (a dona Maria é cozinheira, vai fazer o quê?), e que tinha de parar.
Primeiro momento de reflexão: Vamos dizer a uma pessoa que trabalha numa área há 25 anos, que tem de mudar? Ou deveríamos educar esta pessoa a preparar o seu corpo para a vida que leva? Porque é que para uma pessoa com 20 anos, podemos dizer isto, mas acima dos 40 já “não tem salvação”? A dona Maria alguma vez fez trabalho de força e mobilidade de membro superior? Se perguntarmos à dona Maria se faz exercício, ela diz que faz caminhadas todos os dias. E é neste momento, que o fisioterapeuta se aproxima cada vez mais de um colapso nervoso.
A nossa Dona Maria, melhorou com a prescrição de calorzinho, ultrassom, “massagemzinha” e 3 exercícios, E agora, vamos parar para o segundo momento de reflexão: quem era a pessoa que, não fazendo qualquer exercício físico, ou até, qualquer movimento acima da cabeça durante um período de tempo, que não iria melhorar quando de facto fizesse algum movimento? Foram as máquinas, que a dona Maria tanto adorou, o “serviço de spa” com o quentinho, ou os exercícios com meio quilo que parecia chumbo? A dona Maria detestou esta terceira parte, mal ela sabe, que foi o que a “salvou”. Obviamente, com a dor que ela apresentou, controlar os sintomas de dor foram imperativos para arrancar com a reabilitação, de forma a torná-la uma pessoa mais forte e funcional, tendo em conta o seu trabalho.
Onde quero chegar com isto? A dona Maria, após lhe ter sido prescrito a fisioterapia, ficou de baixa. Não desvalorizo a sua dor, porém, provavelmente 5 sessões de fisioterapia com qualidade (porque um fisioterapeuta não consegue dar qualidade quando tem 3,4,5 utentes por hora), personalizada e focada na sua educação quanto ao movimento, podia levar a 5 dias de baixa, mas nada mais que isso. Com 30 sessões, vamos em 30 dias úteis de baixa, mais coisa menos coisa, fora aqueles que teve antes de começar a fisioterapia. Já tiraram as calculadoras para ver os custos associados a estas paragens?
Onde é que a dona Maria iria encontrar essa fisioterapia de qualidade? Era fácil de encontrar, porém, tinha de pagar do próprio bolso, o que não seria possível para ela.
E, chegamos àquele que para mim é o ponto principal da história. Depois do encaminhamento da médica de família, e sendo o fisioterapeuta completamente capaz de avaliar, não podia ter sido este a fazer a avaliação, tendo em conta o tempo que passou com a Dona Maria? Na reavaliação, para quê sobrecarregar a médica de família com burocracia com pouquíssima importância (visto que não vai alterar em nada o processo de reabilitação)? E, caso houvesse dúvidas, e o Fisioterapeuta achasse necessário uma avaliação por parte de um médico, não teria discernimento para o chamar? O tempo e o dinheiro seriam extremamente valorizados, para não falar, das capacidades de um profissional (fisioterapeuta), não serem reduzidas a executar tarefas. Este, ia avaliar e readaptar o seu próprio trabalho, porque a dona Maria foi encaminhada para fazer fisioterapia, não para uma avaliação de médico Fisiatra. A Fisiatria tem o seu lugar, mas em situações que façam sentido; porque ser um mensageiro e dar consultas de 5 minutos, não pode ser o apogeu da Medicina. No fundo, valorizam-se os profissionais, diminui-se o desgaste burocrático, e permite que todos tenham capacidade de atuar quando é realmente necessário…
O problema continua na forma como as pessoas vêm o profissional de saúde… e o Médico. Há uma endeusação do médico no SNS, como o único capaz de tomar decisões, o soberano. Tem tudo para correr mal, porque os outros profissionais são nada e, quando o médico erra (porque é um ser humano), cai o Carmo e a Trindade. Tudo isto destrói a ideia de entreajuda e trabalho cooperativo, que é supostamente para que serve uma equipa multidisciplinar. Por alguma razão, os fisioterapeutas fazem uma formação de 4 anos, em que os professores reforçam a importância de saber avaliar: porque conseguem. E, se tiverem dúvidas quanto ao seu papel num tratamento, e acharem melhor que o utente seja visto por qualquer outro profissional, estes são capazes de o fazer também.
Esta ideia arcaica do que é a saúde, tem de cair, se é que Portugal alguma vez estará na vanguarda desta área.
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