Entre o espetáculo e o sofrimento animal

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A conversa comum sobre a tauromaquia converge sempre para o mesmo tópico: será que o meio (dor infligida) justifica o fim (entretenimento humano)? Esta questão está saturada de especismo – estamos a assumir que podemos nem sequer causar qualquer sofrimento desnecessário aos animais. O extremo da posição contra o sofrimento é o veganismo, dado que assume que os seres humanos, visto terem alternativas vegetais, não podem causar nem o sofrimento envolvido na morte para alimentação própria. Não digo extremo com conotação negativa, até porque é a posição mais coerente de todas. Isto é, ao nível moral mais fundamental, ou somos contra qualquer sofrimento, ou aceitamos o sofrimento. Neste argumento, ser contra touradas e ir ao McDonald’s jantar parece-me questionável, mesmo sabendo que em Portugal a carne usada nos Big Macs e derivados ser sustentável e esses sinónimos todos que garantem uma vida digna às vaquinhas. E mesmo sabendo que a carne faz parte da nossa dieta essencial. Mas, se mantivermos o debate puramente a nível moral, quando há uma alternativa que não dá sofrimento a ninguém, há que a seguir, senão somos só hipócritas.

Pedrito de Portugal, ávido defensor das touradas, refere que “Para haver direitos tem de haver deveres e os animais não têm deveres. A partir daí, os direitos são questionáveis.” Falso, em todos os aspetos possíveis e imagináveis. Há direitos sem deveres, o argumento cai logo aí. A não ser que este senhor seja a favor de fazer um recém-nascido ser alvo de sofrimento para entretenimento alheio. Imagino que não.

Noutra instância, este senhor refere que “Enquanto Deus entender que a tauromaquia tem um benefício, seja ele qual for, para a sociedade, vai continuar a existir. Quando não for assim, acaba naturalmente como acabou o Muro de Berlim”. Aqui o Pedrito tem toda a razão, mas talvez não pelos motivos que ele pensa. Permitam-me a seguinte comparação, já que o próprio Pedrito decidiu comparar a tourada a um extremo tão longínquo como o muro de Berlim: a tourada tem tanto benefício para a sociedade cristã como a invasão da Ucrânia – está cá para fazer o papel de “tragédia e horror”, no qual Deus se mascara, de modo a dar aos crentes a escolha mais difícil de todas, acreditar Nele apesar da tragédia. Aliás, a pessoa mais importante para a fé cristã, o Papa Francisco, não só discorda de Pedrito de Portugal como faz uma reflexão importante sobre as consequências interpessoais de maltratar animais: “O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra qualquer criatura é contrário à dignidade humana”[1]. Bem, quando cai o argumento que costuma ser o mais forte de todos – Deus está do meu lado – será que há esperança para o Pedrito? Se defendermos a tauromaquia apenas baseado nos argumentos dele, então não, não há esperança. Mas há argumentos melhores a favor da tourada.

Para iniciar a reflexão: qual é a diferença entre a tourada e a pesca desportiva? No caso específico da pesca de espécies de devolução obrigatória (i.e., que têm de ser devolvidas ao seu habitat, caso sejam pescadas), é difícil encontrar diferenças. Isto, claro está, assumindo como verdadeira a tese de que os animais sentem dor num sentido moralmente relevante – vide Miller (2020)[2] para um ensaio que coloca esta premissa em causa. O PAN é bastante coerente neste ponto, dado que tanto quer abolir a tauromaquia como a pesca desportiva[3]. Ou seja, para existir a coerência moral ao nível fundamental que referi acima, ou concordamos com as duas atividades, ou não concordamos com nenhuma.

Os melhores argumentos a favor das touradas, eliminando da equação o fator económico e de ser o sustento de várias famílias, diria que são os seguintes: 1) a matança do touro permite o contacto humano com a morte, o que, tal como a arte, pode resultar em reflexões e ensinamentos cruciais ao ser humano; 2) o matador pode ser visto como um herói, uma representação simbólica do poder da racionalidade e inteligência do ser humano que se sobrepõe à força bruta do touro, que pode inspirar muitas pessoas; 3) o entretenimento, a adrenalina e o prazer são essenciais para retirar a população do seu sofrimento diário, mesmo que apenas durante alguns momentos. O grande problema destes argumentos é que existem alternativas, que não envolvem causar sofrimento a animais, e que promovem o mesmo crescimento existencial que contactar com a morte, heroísmo e entretenimento promove. E, mantendo o meu argumento inicial, quando há alternativas que não provocam sofrimento, há que as seguir.

Mas atenção, também não tomo a posição de Inês de Sousa Real de chamar a tauromaquia de “erro histórico e civilizacional”[4], já que esse passo, merecedor de um artigo por si só, trata-se da culpabilização dos nossos antepassados, o que revela uma atitude presentista e arrogante (a porta-voz do PAN refere-se como estando “do lado certo da história”), sem nenhum objetivo óbvio para além da tentativa de mostrar superioridade moral. Tentemos no futuro separar o ego da política. Uma coisa é abolir as touradas para terminar com o sofrimento desnecessário dos animais, outra é abolir touradas porque quem as vê/realiza/organiza é um ignorante, criminoso, cruel e do lado errado da história. Deixemos as nossas gerações futuras julgar Inês Sousa Real da mesma forma que ela julga os nossos antepassados…

Quando o assunto é sofrimento animal, as águas são turvas num rio de hipocrisias, e Pedrito de Portugal destinou-se a levar com as bandarilhas no dorso quando escolheu usar argumentos falaciosos para defender um assunto considerado indefensável.


[1] papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf - https://www.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf. (2015).
[2] Miller, C. (2020). Do Animals Feel Pain in a Morally Relevant Sense? Philosophia, 49(1), 373–392. https://doi.org/10.1007/s11406-020-00254-x
[3] Pereira, C. (2022, January 10). Proteção, Saúde e Bem-Estar Animal | PAN. PAN | O Partido Das Pessoas, Dos Animais E Da Natureza. https://www.pan.com.pt/eleicoes/eleicoes-legislativas-2022/programa-eleitoral-legislativas-2022/programa-eleitoral-pan/protecao-saude-e-bem-estar-animal/

[4] De Sousa Real, I. (2023, September 7). Pedrito de Portugal e a aberração das touradas. Expresso. https://expresso.pt/opiniao/2023-09-07-Pedrito-de-Portugal-e-a-aberracao-das-touradas-c10575d4#comentarios

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