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No passado dia 23 de agosto apercebi-me de que, como futuro psicólogo, a minha liberdade de expressão pode estar em risco.

Na última quarta-feira, Jordan Peterson, psicólogo canadiano e agora maioritariamente comentador sociopolítico, recebeu uma decisão não favorável no seu caso jurídico contra o Colégio de Psicólogos de Ontário, Canadá. Em causa estiveram alguns tweets de Peterson nos quais, por exemplo, se referiu a uma pessoa transgénero pelo seu antigo nome, ou descreveu uma modelo ‘plus-size‘ como “not beautiful.” O Colégio decidiu que estas observações não eram compatíveis com a profissão de psicólogo, e ameaçou retirar a licença de Peterson caso este não fizesse um programa de educação e remediação contínua relativamente aos seus comentários públicos. O Colégio referiu também que estes comentários de Peterson revelam que este poderá estar a “fazer comentários degradantes, humilhantes e não profissionais”1.

Nem sei bem por qual absurdidade começar…

Antes de mais, assim como o comum dos mortais, Jordan Peterson tem alguns tweets completamente infundados, como, por exemplo, um em que chama de “uma colunista aleatória” a Lisa Feldman Barrett2, uma cientista no top 1% de citações mundialmente, muito graças à sua investigação em psicologia e neurociências. Mas, por muito ridículo que seja este tweet, a resposta não deveria passar por amordaçá-lo por esta nem por outras opiniões que alguém possa achar ofensivo. Peterson, ou qualquer outro psicólogo, não pode perder o direito à liberdade de expressão só por fazer parte de uma classe profissional. E é exatamente isso que está a acontecer.

Mas o que é isto da liberdade de expressão? Nada mais nada menos do que o chão que a liberdade individual e a autorrealização usam para se erguer. É um dos mais importantes direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição Portuguesa3. Talvez o mais importante para a democracia. Esta liberdade é vista como uma garantia de que o governo não irá abusar dos seus cidadãos, nem controlar a informação que estes partilham e recebem, como muito se viu em tempos de ditadura. Aliás, até o próprio António de Oliveira Salazar concordava com a importância da liberdade de expressão. Reparem na intervenção do Deputado Castilho de Noronha, que, em 1951, citou Salazar4:

“A censura é já de si odiosa. A censura irrita. Disse-o uma vez o Sr. Dr. Oliveira Salazar ao jornalista que o entrevistava, (…) porque (…) não há nada que o homem considere mais sagrado do que o seu pensamento, a expressão do seu pensamento. (…) Temos, pois, que a censura é um mal. Mas, pelo que S. Ex.ª [Salazar], em justificação do estabelecimento da censura, disse logo a seguir às palavras que acabei de citar, é um mal necessário.”

Estaremos nós a voltar atrás no tempo? Será que nos esquecemos de que censurar é só um mal e nunca necessário? Se pensam que estamos bem longe da censura de Salazar, pensem novamente. Jordan Peterson está a ser, de facto, censurado. Em vários sentidos da palavra. O salto entre recusar uma licença profissional por opiniões políticas e o ato de censurar é bastante pequeno. Este medo de incómodos e ofensas, este evitamento de conflitos e animosidades, este aceitamento de todas as perspetivas boas e nenhuma má, só trará miséria. Já John Stuart Mill referia a importância de ouvirmos as vozes erradas, de modo que as vozes “corretas” sejam testadas. Se tudo o que dissermos estiver correto, para quê falar? Se as únicas coisas que podemos dizer estiverem elencadas em modo de regulamento, como o Colégio de Psicólogos de Ontário aparenta querer fazer, então já sabemos exatamente o que o outro psicólogo vai dizer em público. Será inútil falar e, por sua vez, inútil pensar, porque, verdade seja dita, os psicólogos não podem ter opinião política… Enfim… É bem possível que este caso de tribunal que Jordan Peterson irá continuar a lutar por vencer possa decidir o futuro da profissão de psicologia clínica e psicoterapia. Reparem como começa a justificação do tribunal para a decisão5:

“Quando os indivíduos fazem parte de uma profissão regulada, estes não perdem o seu direito à liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, no entanto, estes indivíduos assumem responsabilidades e têm de cumprir as regras do seu órgão regulador que podem limitar a sua liberdade de expressão.”

Na primeira frase: tens liberdade de expressão. Na segunda frase: calma, nunca disse que tinhas liberdade de expressão total. Absurdo, não há outra palavra. Ou é um direito fundamental sem reservas, ou não é. Mas este não é um assunto simples. As 17 páginas do Grupo de Trabalho Transatlântico que sumarizam o estado da liberdade de expressão na Europa e nos Estados Unidos (sim, 17 páginas que apenas “sumarizam”) abordam vários momentos em que não parece óbvio que a liberdade de expressão seja a solução final6. Incitação à violência, desinformação, difamação, propriedade intelectual e os famosos “crimes de ódio” (que abordarei noutro artigo) são apenas alguns dos exemplos em que as águas não são claras. Mas em nenhum momento fala de opiniões políticas nem de ofensas individuais. Essas águas estão claras e assim têm de permanecer, em detrimento de perdermos o poder de pensar. Há, no entanto, esperança de que tal liberdade ainda seja reconhecida. Essa esperança está na quantidade de apoio que Peterson tem recebido ao longo destes dias. Prova disso está nos 50 mil dólares que este já angariou no espaço de dois dias para o seu fundo de defesa da liberdade de expressão, criado para apoiar não só a sua luta, mas também a luta de outros profissionais que se encontram no mesmo paradigma que Jordan Peterson7. Felizmente, no Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses ainda não existe qualquer alínea que tente regular a minha expressão na esfera pública, à exceção da difusão de conhecimentos da Psicologia, o que faz todo o sentido regular de modo a impedir, por exemplo, desinformação (deixando o debate sobre o que é desinformação também para outro artigo). Espero que assim continue, sendo esta uma das formas de manter os nossos psicólogos e psicólogas como membros ativos da sociedade civil, como assim o devem ser.

É em sua defesa que termino o artigo. Em defesa de Peterson a título pessoal, pela sua genialidade geracional, mas acima de tudo em defesa da liberdade de expressão como futuro profissional da psicologia. Como Peterson diria, não me irão suspender a língua por decreto governamental.


  1. Gollom, M. (2023, January 14). Jordan Peterson is being disciplined for his tweets. Why some say that raises free speech issues. CBC. https://www.cbc.ca/news/canada/toronto/jordan-peterson-college-psychologists-tweets-1.6711524 ↩︎
  2. Dr Jordan B Peterson on X. (2022). Twitter. https://twitter.com/jordanbpeterson/status/1539314004287336449?lang=en ↩︎
  3. O que significa a liberdade de expressão que a lei portuguesa consagra? Quais são os seus limites? (2022). Fundação Francisco Manuel Dos Santos. https://ffms.pt/pt-pt/direitos-e-deveres/o-que-significa-liberdade-de-expressao-que-lei-portuguesa-consagra-quais-sao-os ↩︎
  4. COMUNICAR. (n.d.). https://app.parlamento.pt/comunicar/Artigo.aspx?ID=1283 ↩︎
  5. Saraal. (2023, August 23). Peterson v. College of Psychologists of Ontario – Superior Court of Justice. Superior Court of Justice. https://www.ontariocourts.ca/scj/peterson-v-college-of-psychologists-of-ontario/ ↩︎
  6. TWG_Freedom_of_Expression.pdf – https://www.ivir.nl/publicaties/download/TWG_Freedom_of_Expression.pdf. (2019). https://www.ivir.nl/publicaties/download/TWG_Freedom_of_Expression.pdf ↩︎
  7. Free Speech Defence Fund: Dr. Jordan B Peterson organizada por Jordan Peterson. (2023). gofundme.com. https://www.gofundme.com/f/support-freedom-of-expression-canada-elsewhere ↩︎

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