Mares e silêncios: o corpo feminino em travessia

A “loucura” de tratar o aborto em águas internacionais é a metáfora mais exata da condição feminina: para ser dona do próprio corpo, a mulher precisa, muitas vezes, de deixar o território, atravessar o impossível, existir num entre-lugar onde as leis não a alcançam.

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Em Grandma (2015), de Paul Weitz, Sage, (Julia Garner), uma jovem de dezoito anos procura a avó, Elle (Lily Tomlin), após descobrir uma gravidez indesejada. A poeta, outrora reconhecida e, hoje emocionalmente exausta, não tem dinheiro, mas tem palavras, lembranças e feridas. Juntas percorrem um dia que é também uma travessia interior: entre avó e neta, o passado e o presente, dois abortos separados por décadas e silêncios. Nesse percurso, emergem as camadas de um feminino que aprende, à força, a decidir e a cuidar, mesmo quando o próprio corpo se torna campo de culpa e resistência.

Para Maria Homem, psicanalista com vasto trabalho sobre o feminino e o desejo, o corpo feminino é um campo de batalha simbólico: nele se projetam o desejo, a culpa e o poder. Em Grandma, esse campo ganha rostos e tempos distintos: Sage e Elle enfrentam, cada uma à sua maneira, o mesmo conflito entre autonomia e culpa, decisão e amor. Avó e neta partilham uma dor que atravessa gerações e juntas parecem reinventar novas formas de existir depois da ferida.

Elle é uma mulher transgressora e lúcida, assumidamente lésbica, poeta e rebelde, que transforma cartões de crédito em apanhadores de sonhos e recusa qualquer submissão. Sage é uma jovem perdida, em busca de ajuda e referências. Enquanto Elle guarda na estante A Mística Feminina de Betty Friedan, em primeira edição, a única “Mística” que Sage conhece é a dos super-heróis. Mas entre ambas há um reconhecimento silencioso: ligam-se não apenas por laços de sangue, mas por uma história comum de escolhas sobre o corpo, o maternar e o direito de decidir o próprio destino.

A coragem dessas duas mulheres atravessa o ecrã e ecoa em tantas outras, de diferentes geografias e tempos, que enfrentam o mesmo dilema: afinal, as mulheres têm direito aos seus corpos? Em Portugal, até 2007, o aborto era crime. Antes disso, muitas viveram o desespero da clandestinidade e, em alguns casos, buscaram literalmente o mar. Em 2004, o navio Borndiep, da organização holandesa Women on Waves, tentou atracar em águas portuguesas para oferecer aconselhamento e pílulas abortivas sob a bandeira da Holanda. Impedido de entrar, tornou-se símbolo de uma fronteira física e moral: o corpo feminino como território de leis e marés, de culpa e coragem. O oceano, que deveria separar terras, espelhou o abismo entre o que é permitido e o que é vivido, o mesmo abismo que Elle e Sage percorrem, cada uma à sua maneira, entre a decisão e a dor.

A “loucura” de tratar o aborto em águas internacionais é a metáfora mais exata da condição feminina: para ser dona do próprio corpo, a mulher precisa, muitas vezes, de deixar o território, atravessar o impossível, existir num entre-lugar onde as leis não a alcançam. O Borndiep navegava entre países, como Elle conduz o carro entre memórias. Ambas as travessias (marítima e terrestre) revelam a mesma urgência: a busca por um espaço onde o corpo feminino possa respirar sem ser julgado.

Três anos após aquele episódio, com o referendo de 2007 e a aprovação da Lei n.º 16/2007, Portugal despenalizou o aborto até à décima semana, vitória conquistada a custo de décadas de luta, culpa e clandestinidade. No entanto, essa conquista ainda ecoa como um murmúrio frágil diante dos retrocessos que se anunciam noutros lugares. No Brasil, o debate volta a endurecer: o aborto continua restrito a poucos casos e projetos de lei recentes ameaçam criminalizar até as exceções. Enquanto Elle é agredida por uma rapariga religiosa por defender a liberdade de escolha, as mulheres brasileiras enfrentam simbolicamente os mesmos golpes. O olho roxo de Elle reflete um país que ainda pune quem decide.

É curioso perceber que, sendo nós mulheres favoráveis ou não, o tema escorre pelas nossas histórias de modos distintos, mas sempre presente. Mesmo quando não nos toca diretamente, ele pulsa ao redor, porque o debate sobre o aborto nunca é apenas sobre o aborto: é sobre quem pode decidir. É sobre a dúvida e o medo de que esse “alguém” ainda não sejamos nós. Por isso, mesmo na era das inteligências artificiais que calculam o nosso IMC, planeiam dietas e organizam folhas de cálculo, o mundo continua sem saber lidar com o corpo feminino.

Grandma obriga-nos a olhar este tema sem dogmas. Pergunta-nos: e se fôssemos nós a rapariga grávida? E se fôssemos nós a avó, tentando dar contorno a uma dor antiga e recorrente? Entre as muitas camadas do filme, há uma especialmente reveladora: ele convida-nos a revisitar as nossas próprias histórias e, com elas, as das mulheres que vieram antes. A lição que propõe não é moral nem normativa; não ensina como ser uma mulher respeitável, mas como ser uma mulher corajosa. Elle encarna essa coragem, a de escolher, mesmo quando a escolha envolve o corpo, território que durante séculos foi tratado como propriedade alheia. Ao lado da neta, ela ensina que a voz feminina não é dada, é conquistada. E essa conquista tem custos: um olho roxo, uma palavra interrompida, uma história que insiste em repetir-se.

Talvez o que se herda entre mulheres, entre avós e netas, entre Portugal e Brasil, entre mar e estrada, seja justamente isso: a coragem de suportar o indizível e de continuar. O feminino, afinal, é o que resiste entre as marés da história, o que insiste em existir mesmo quando o mundo tenta calá-lo.

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Entre letras e mundos, transformo palavras em pontes. Revisora e pesquisadora em linguagem e literatura, encontro na escrita um modo de escutar o mundo. Formada em Letras e especialista em Revisão de Texto pela Universidade Católica de Brasília, concluindo o Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes na Universidade do Porto (FLUP), onde estudo o corpo e o feminino na palavra. Acredito que cada texto é uma travessia, e que escrever é sempre um gesto de descoberta.

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