Há histórias que dizem mais sobre um país do que qualquer debate político. A de Eduardo Barroso é uma delas. E nem sequer surgiu num grande palco dramático: foi contada assim, quase ao de leve, num debate de saúde emitido em direto na SIC Notícias, no sábado, 22 de novembro de 2025, quando lhe perguntaram sobre o acesso de imigrantes em situação irregular ao SNS. Barroso, que nunca foi homem de contornar perguntas, decidiu contá-la como quem tira um peso antigo do bolso.
Explicou então que, há cerca de vinte anos, durante o seu tempo como diretor de serviço, lhe entrou um jovem imigrante pela porta — vinte anos, coma hepático, sem documentos. Ou seja, segundo a terminologia clínica da burocracia nacional: “ilegal”.
A situação era simples naquilo que tem de cruel: sem transplante, morria. Com transplante — já com dador à espera — provavelmente vivia. Mas eis que alguém, fiel cumpridor das santas escrituras do regulamento e da lei, lhe lembrou que o rapaz “não existia oficialmente” e, portanto, não tinha “direito” ao transplante. Não tinha direito a continuar vivo: dito assim, com a naturalidade de quem comunica uma multa de estacionamento.
Barroso, já com anos suficientes para saber que certas conversas só servem para atrasar o inevitável, respondeu com uma frase que devia figurar nos manuais de ética:
“Olhe, esta conversa só existiu daqui a 15 minutos. E fiz a cirurgia.”
O próprio chamou ao gesto “a maior ilegalidade” da carreira. E talvez tenha sido. Mas isso diz menos sobre ele do que sobre o país. Quando salvar alguém é considerado “ilegal”, o problema não está na cirurgia: está no sistema.
Depois lançou a pergunta aos candidatos presidenciais, ali em direto, sem rede:
“O que fariam na minha situação?”
Pergunta arriscada, porque a resposta pode ir do cínico ao trágico-patético. Mas necessária.
O caso resume-se assim: um jovem a morrer, um sistema hesitante porque falta um papel, e um médico a escolher a vida em vez do formulário. Nada de extraordinário — até percebermos o que revela: a diferença entre o legal e o legítimo.
Legal é o regulamento.
Legítimo é não deixar morrer alguém por falta de número de contribuinte.
Quando Barroso escolhe o legítimo, mostra o ridículo do legal. Expõe o buraco negro onde se enfiam as pessoas que “não existem oficialmente”. Aquelas que só aparecem quando o desastre chega. Chamam-lhes “ilegais”, como se a vida humana pudesse ser classificada em categorias administrativas.
E aqui começamos a ver o problema maior: a tendência crescente para dividir o país entre quem “tem direito pleno” e quem “não tem”. É o primeiro passo da desumanização — esse desporto político que alguns praticam com entusiasmo. Basta transformarmos pessoas em estatísticas para deixarem de doer. “Ilegal”, “não existe”, “não tem direito”: três formas diferentes de dizer “não é bem dos nossos”.
E quando uma democracia começa a funcionar assim, a deslizar para uma lógica de quem entra e quem fica à porta, deixa de ser democracia e passa a ser condomínio com regulamento demasiado zeloso. Depois admiram-se que surjam partidos que tratam imigrantes como se fossem electrodomésticos usados. O terreno já estava preparado: só faltava quem gritasse mais alto.
Mas isto é mais do que política. É uma questão de humanidade. E, no fim, sobra a pergunta essencial: que humanidade queremos praticar? A que exige comprovativo de morada ou a que estende a mão?
E que mundo queremos deixar aos nossos filhos? Um onde têm de provar que “existem oficialmente” antes de serem atendidos? Ou um onde existir seja suficiente?
Num exercício totalmente teórico — daqueles que se fazem porque nunca se farão a sério — imaginemos como diferentes temperamentos políticos reagiriam ao dilema de Eduardo Barroso.
O liberal, numa lógica que poderíamos associar ao estilo argumentativo de João Cotrim de Figueiredo, afirmaria com convicção que todos devem ter acesso à saúde — idealmente universal, mas organizado de forma eficiente e sem ilusões sobre os custos. No subtexto, surgiria aquela nuance típica do pensamento liberal: o acesso é igual, mas a capacidade de escolha tende a aumentar com a carteira. E, com a serenidade de quem sabe que os números são teimosos, lembraria que “a sustentabilidade é essencial”. É a forma elegante de dizer: primeiro o princípio, depois o orçamento — e só depois, se houver espaço, a utopia.
O conservador, numa tonalidade moderada que lembra figuras como Marques Mendes, declararia prontamente que salvaria o jovem — porque ninguém quer parecer avesso ao humanismo. Mas acrescentaria, em voz mais baixa, que convém evitar “precedentes complexos”. É uma prudência compreensível: não é a vida que assusta, é o que vem depois dela em termos de normas.
O progressista, num registo que evoca o centro-esquerda clássico de António José Seguro, proclamaria que nenhum ser humano pode ser deixado para trás. E até emoção real haveria no discurso. Mas logo surgiriam propostas de grupos de trabalho, consultas públicas e relatórios participativos. A intenção impecável; o calendário, nem por isso.
O populista, com o estilo direto e binário frequentemente associado a discursos como o de André Ventura, trataria o caso com a rapidez de quem prefere certezas simples a dilemas complexos. Em três frases resolveria o enredo, encontraria um culpado útil e encaixaria o jovem — mesmo em coma — no papel de símbolo conveniente para uma narrativa já preparada. Não é preciso analisar: basta ajustar a história ao argumento.
O tecnocrata, esse arquétipo de independência organizada, transformaria o drama num diagrama de fluxos. Não é frieza; é método. Criaria equipas, subequipas e métricas. Talvez o processo não salvasse o rapaz a tempo, mas deixaria um manual tão arrumado que seria pecado não o seguir.
E o militar institucional, perfil que o público tende a associar ao estilo disciplinado de Gouveia e Melo, aplicaria o protocolo com a precisão de quem não improvisa com vidas humanas. Verificaria os procedimentos, confirmaria as hierarquias, ajustaria o que tivesse de ser ajustado — sempre dentro das regras. A sua intervenção não seria o gesto heroico de um indivíduo, mas a eficiência calibrada de um sistema a funcionar como deve.
E nós? O que faríamos, sem microfone nem slogan, apenas com uma vida à nossa frente? A resposta é mais simples do que qualquer programa político: ou escolhemos ser humanos, ou escolhemos ser coerentes com o regulamento. E esse — esse sim — é o verdadeiro legado que deixamos aos nossos filhos.
Referências
MAGG. (2025, 22 de novembro). Eduardo Barroso assume “a maior ilegalidade” da carreira: transplante de fígado a imigrante ilegal. SIC Notícias/MAGG. https://magg.sapo.pt/actualidade/artigos/eduardo-barroso-assume-a-maior-ilegalidade-da-carreira-transplante-de-figado-a-imigrante-ilegal
24 Notícias. (2025). Eduardo Barroso assume maior ilegalidade da carreira e deixa questão aos candidatos presidenciais. 24 Notícias/SAPO. https://24noticias.sapo.pt/atualidade/artigos/eduardo-barroso-assume-maior-ilegalidade-da-carreira-e-deixa-questao-aos-candidatos-presidenciais
SIC Notícias. (2025, 22 de novembro). Debate sobre saúde e imigração no SNS (emissão televisiva). SIC Notícias.









































































































