Em defesa da democratização do Design no meio digital

"Os desenvolvimentos tecnológicos e a facilidade de acessibilidade a ferramentas gráficas têm, há muito, ameaçado as profissões criativas, mas existe um debate sem consenso sobre se estas ameaças são fundamentadas."

Tempo de leitura: 12 minutos

Como disciplina, o Design centra-se em solucionar problemas. É uma visão simplificada do que é, em geral, transmitido à população: como é que uma identidade visual ou remodelação de espaço pode ser “solucionar um problema”? Todo cliente ou usuário final tem uma necessidade, seja ela comunicar a sua mensagem de forma clara ou ter um produto funcional/estético. Um logotipo tem por objetivo identificar a missão e os valores duma empresa ou organização – o trabalho do designer não é só torná-lo “bonito”, mas funcional e uniforme em todos os seus media e apresentações. Uma peça de mobiliário tem que resolver a “necessidade” de conforto e estética, num equilíbrio de forças; tornar o produto resistente, mas não demasiado pesado, modelar para o melhor conforto do corpo humano sem pesar na sua estética ou afundar o quarto onde se insere, com demasiado peso visual. E tudo isto mantendo os custos reduzidos, de modo a sempre maximizar o lucro ou respeitar as limitações financeiras do cliente.

Parte da responsabilidade do designer é ouvir o cliente, traduzir o que ele/ela diz em questões práticas e estudar as melhores soluções dadas as únicas circunstâncias, objetivos e orçamento daquele cliente. São estas competências que os estudos acadêmicos ensinam, mais do que como utilizar as ferramentas. Qualquer pessoa pode aprender a utilizar as ferramentas digitais, se dedicar o tempo, mas ter uma visão analítica de como cada elemento pode influenciar é a parte que distingue um bom profissional de alguém que apenas possui o título. Quando crias uma campanha de comunicação, é importante conheceres os contextos socioculturais dos públicos-alvos, para não ferires sensibilidades, bem como utilizá-los a teu favor, captando o que importa a cada público. É importante conheceres o funcionamento do corpo humano além do “homem ideal” de 1,70m, para conseguires desenhar mobília e espaços adequados – quem vai interagir com os produtos tem várias alturas, diferentes facilidades e limitações de mobilidade, e não é suficiente ler um capítulo de Ergonomia. É preciso experienciar o espaço, seja ele físico ou digital, e ver como o público interage com cada objetivo, cada cartaz, cada sinal… Ter o sentido crítico e a paixão para estar constantemente a pensar e questionar. Algo que senti no meu percurso académico é que esses pensamentos ligaram um interruptor em mim que nunca mais desligou: hoje vejo o mundo duma forma mais crítica. Quando desenhas uma aplicação, blog ou newsletter, normalmente crias de forma a que esteja estática, mas um ponto que é esquecido é que… nem todo utilizador verá o conteúdo de forma estática, sentado em boa iluminação. Estarão em movimento, num carro ou autocarro, com bolsas e sacos a ocuparem as mãos ou com uma dor de cabeça que qualquer cor ou animação rápida demais pode ser o sinal que diga ao subconsciente “não quero isto”. Quando analisas tudo a este detalhe, por vezes és visto como um crítico ou pessimista, mas quantos de nós já evitamos uma compra online ou paramos de ver um conteúdo porque algo nele tornou-se desconfortável?

Design democrático é um conceito difundido por Philippe Starck que, em poucas palavras, acreditava ser possível oferecer produtos com qualidade a preços acessíveis. A empresa sueca IKEA é um exemplo prático de redução do custo dos produtos para o cliente por meio de vários métodos. Todos os passos, desde a fabricação até a entrega para o cliente, foram estudados ao detalhe, para reduzirem todos os custos extras. Não é ao calhas que compete ao cliente montar o produto final – as embalagens são reduzidas ao máximo, para pagar menos em entregas, bem como os manuais de instrução são limitados a pictogramas para ser abrangentes a várias línguas e níveis de literacia. Nas suas gamas, focam em cores neutras e linhas simples para melhor adaptação aos vários estilos de decoração que os clientes possam desejar, bem como em mobiliário modular em vez de peças únicas. O objetivo deles não é uma peça duradoura por gerações, mas preencher a lacuna do público em geral que procura estes bens essenciais com as limitações de espaços e orçamentos comuns a muitas famílias, sem ter que abdicar da estética ou utilidade. A marca hoje em dia ainda é sinônimo de “prático”, oferecendo soluções únicas que são telas brancas para o que o cliente queira. Basta uma pesquisa rápida nas redes sociais para encontrarmos combinações com os vários mobiliários modulares que, com um toque DIY e criatividade, criam algo único a cada família. Isto levou ao “Efeito IKEA”, um viés cognitivo identificado em 2011 por dois professores universitários de Harvard Bussiness School e Yale, que se baseia na ligação emocional forte que criamos com os objetos que nós próprios “construímos”. Em suma, o esforço que gastamos ao montar ou criar um determinado objeto aumenta o seu valor aos nossos olhos e leva a uma sobrevalorização dessas mesmas criações quando comparadas com objetos semelhantes. Este viés, por si só, não é algo negativo, apenas um conceito psicológico que explica um comportamento humano… Mas quando o ignoramos, esquecemo-nos de que pode levar a uma subvalorização do trabalho e esforço dos profissionais em determinadas áreas.

Podia aplicar estes argumentos a várias áreas, mas, em parte pela minha experiência profissional e em parte para simplificar, vou focar-me no impacto que tem no Design Gráfico. Nos últimos anos, notou-se um aumento da utilização das redes sociais, seja pelos content creators, popularmente conhecidos como influencers, ou pelas empresas que utilizam estes meios como forma principal de marketing. Neste momento, estas capacidades são coloquialmente comparadas a duas “ferramentas digitais”, Inteligência Artificial Generativa (ex: OpenAI) e a aplicação Canva. Quero focar-me em duas perspetivas: como o acesso a estas ferramentas podem ser um “ataque” às profissões criativas e como podem ser benéficas ao público em geral, quando usadas corretamente. Para clarificar os meus vieses, pessoalmente sou contra a utilização da Inteligência Artificial Generativa pelo seu impacto no ambiente bem como no nosso sentido crítico, mas não irei abordar estes motivos agora – o importante é o seu impacto direto e indireto nas profissões criativas e como esse impacto está conectado a uma desvalorização maioritariamente cultural.

Em espaços com profissionais criativos, existe uma relação amor-ódio com Canva e aplicações semelhantes. Podemos ver o Canva como uma versão melhorada do Power Point, com vários modelos pré-prontos e de fácil ajuste para os mais diversos fins, desde cartazes a posts para redes sociais. Inclui também ferramentas de edição de fotografia e vídeo, tendo uma versão gratuita, limitada no que permite (cada vez mais limitada, dada a maior comunidade de utilizadores), e uma versão paga. O mercado da comunicação e edição gráfica, desde os anos 90, tem sido dominado pela Adobe, e a existência de versões gratuitas de fácil acesso não é uma novidade: softwares como o Gimp, Krita e Inkscape forneciam uma ferramenta profissional ao acesso de qualquer um. Como entusiasta da área gráfica, explorei muitas destas ferramentas antes de seguir uma licenciatura, e é como alimentei o “bichinho” da criatividade. A diferença reside na utilização da ferramenta. Enquanto que estes programas eram uma tela branca para quem quer aprender a pintar no digital ou manipular objetos vetoriais (capacidades que são essenciais nestas profissões), as novas “versões” são templates que só requerem alterar texto, cor e imagem de fundo, sem envolver muita técnica ou conhecimento prático. Os conflitos começam a surgir quando alguém, por ter acesso a estas ferramentas, compara-se aos profissionais que gastaram anos a aperfeiçoar os seus conhecimentos, desvalorizando o seu trabalho ou exigindo o mesmo tratamento e pagamento. Em poucas palavras, são estas pessoas que se rotulam de “designers”, vendendo serviços que nada mais são do que pequenas alterações a templates que nem são da sua autoria… ou, pior que isto, manipulam os reais profissionais – muitos deles a lutarem com unhas e dentes para começar a sua carreira profissional num país que desvaloriza as artes criativas – a aceitarem projetos por cêntimos porque “eu consigo fazer isso no Canva em cinco minutos”. Este é o problema: não que as aplicações estejam disponíveis ao público, mas como isso traz à superfície o pensamento subconsciente geral que se tem das profissões criativas: que somos “inferiores” aos restantes profissionais, e não merecemos pagamento pelo nosso tempo ou esforço. Que os anos e décadas a estudar as teorias e processos conceptuais, as horas e dias em pesquisas e análises práticas, não valem mais que uma única salva de palmas e revirar de olhos – tudo porque essas mesmas pessoas não veem os rascunhos descartados por detrás do projeto final cuidadosamente analisado ao detalhe. Quem acredita que o nosso processo académico baseia-se em desenhos “bonitos” feitos em questão de minutos ignora as disciplinas teóricas que alimentam e treinam a nossa ginástica mental, além do tempo dedicado a estudar como passar uma ideia em palavras para algo tangível. Isto vai além da teoria das cores e do porquê de certos padrões geométricos transmitirem calma mental; implica conhecer as limitações técnicas dos vários materiais e impressões e como utilizá-las a nosso favor. Implica estudar ao máximo como limitar o desperdício de materiais para reduzir custos na produção, mas sem prejudicar o efeito final – temos que ter uma dose de engenharia, além do sangue artístico que corre dentro de nós. Tens que ter noção das implicações legais, financeiras e éticas de exerceres a tua profissão: algo tão simples como “desenhar um logotipo” complica-se em segundos quando te apercebes que tens na tua mão a chave para essa marca entrar na mente do cliente-alvo quase inconscientemente… ou colocá-los em problemas legais, seja pelas pequenas lembranças a marcas já existentes (sejam estas concorrência direta ou não) ou por quebrar regras culturais, ofendendo algum possível membro do público.

Apesar dos fatores acima descritos, eu ainda acredito que exista uma justificação para estas ferramentas digitais estarem ao acesso de qualquer um. Desde o utilizador comum que apenas procura uns convites para a festa de aniversário ou alguma arte simples e rápida para facilitar o seu dia a dia, ao pequeno empreendedor que está a procurar divulgar os seus serviços e/ou produtos dentro dum orçamento limitado, a verdade é que estas pessoas nem sempre irão beneficiar dos serviços dum profissional. E terem o acesso a uma ferramenta gratuita pode dar-lhes aquela ajuda necessária! Todos nós merecemos ter um pouco de estética e organização, bem como incentivar a criatividade e produtividade. Estudantes ou entusiastas podem ver estas aplicações como meios de pôr em prática as suas ideias, alimentando aquele “bichinho” que um dia pode tornar-se na sua carreira. E outro grupo, que acho ser o mais importante como profissional, diria serem os próprios clientes dos designers que, por terem uma ideia concreta, conseguem exemplificá-la e descrevê-la… Abrindo a conversa com o profissional onde este pode melhor traduzir a ideia para a realidade, facilitando a introdução do briefing. Os desenvolvimentos tecnológicos e a facilidade de acessibilidade a ferramentas gráficas têm, há muito, ameaçado as profissões criativas, mas existe um debate sem consenso sobre se estas ameaças são fundamentadas. Alguns acreditam veementemente que os algoritmos poderão um dia substituir estes profissionais, e que tarefas antes resumidas a designers (criação de logotipos, itens publicitários, etc.) no futuro serão respostas rápidas a prompts escritos – ou com pouco trabalho e técnica por detrás. Outros acreditam que, por mais que estes avanços sejam vistos como ameaças, nada substitui um bom profissional e a pesquisa visual, design thinking e estratégia por detrás de gráficos aparentemente “simples”. Se me perguntarem, incluo-me no segundo grupo e, ao contrário de os desenvolvimentos da inteligência artificial generativa (por vezes, “degenerativa”) tentarem reduzir o papel dos artistas e criativos à insignificância, pouco a pouco o aumento destas imagens e vídeos com pouca “humanidade” e muitos algoritmos começa a gerar um desejo no público de algo novo, diferente, inovador e evolutivo. Algo que demonstra, acima de tudo, uma mensagem, uma história, um processo e evoca emoção. Porém, acredito que a grande ameaça não são as ferramentas, mas as ideologias redutivas dos criativos a “não necessários” ou “inferiores”. Em vez de olharem o esforço e conhecimento, justificam a qualidade com “talento”, porque assim será fácil continuar acreditando que o que os separa do criativo apenas é “sorte”. Não devemos recear estes avanços tecnológicos, mas, sim, vê-los como um passo na democratização do design e na aceitação de que, se querem algo com qualidade, ela requer tempo, dedicação e custo – seja ele em horas despendidas na aprendizagem ou pagando o respetivo profissional. Enquanto não mudarmos a perspetiva cultural de “criativo não é profissão, é hobby”, continuarão a surgir novas ameaças e novos debates sobre o fim destas profissões estar no horizonte, quando, na realidade, elas estão num crescimento ascendente, e cada vez mais sentimos a sua falta, especialmente quando em comparação com um trabalho “malfeito”.

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Diana Freitas, nasceu em 1994, licenciada em Design pela Universidade da Madeira. Tem um interesse pela psicologia e comportamento humano, e a necessidade de pôr os seus pensamentos em palavras.

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