Como seres humanos, criamos estratégias para tornar a realidade acessível à nossa compreensão. A verdade é que o mundo é complexo e precisamos de o simplificar para que seja passível de análise, aproximando-o do que nos é familiar ou generalizando.
Esta maneira de refletir, quando não é cuidada, ajuda não só os discursos fáceis e populistas, como também conduz a uma polarização drástica que diminui a diversidade do debate político, com argumentos a preto e branco. Seja porque etiquetamos o discurso e o pomos desde logo numa caixa, ignorando as suas especificidades, seja porque já estamos à procura de ouvir algo que saliente apenas o que nos convém. A isto chama-se estereotipar e entrar num viés de confirmação, respetivamente.
As caixas onde colocamos ideias e debates têm dois nomes: esquerda e direita. Como se apenas estas fossem capazes de compilar todas as nuances dos movimentos políticos e ideológicos. Estes termos têm uma razão de existir que remonta ao final do séc. XVIII e serviram o seu propósito. No entanto, o mundo foi e vai ficando cada vez mais complexo, o que me leva a questionar se a banalização dos termos não prejudica, e muito, a leitura das propostas, ou mais: a questão íntima da nossa identidade e sistema de valores.
A nossa postura ideológica passa por vários critérios ou variáveis. Talvez se distancie da noção de espectro e se aproxime mais de uma mesa de mistura com diversos botões, níveis e alavancas. Aqui entram não só variáveis como a economia, questões sociais, níveis de autoridade aceitáveis, ambiente, ligação histórica e contextual.
Só partindo desta premissa entendemos que estes rótulos nos servem de pouco. É comum ouvir alguém dizer “eu sou de direita/esquerda, mas…”, porque a verdade é que a nossa vida é muito mais que isso, mesmo que a nossa posição política seja parte fundamental da nossa identidade. Este “mas” serve para refletirmos se vale assim tanto defender uma bandeira/cor específica. Não no sentido de censurar quem se identifica bastante com uma, mas para nos desprender dessa crença e nos incentivar (ou libertar) a analisar as propostas e refletir sobre elas, sem partir de ideias preconcebidas ou votar de modo ritualístico. Isto está patente na “tradição” de generalizarmos que uma determinada pessoa que apoia uma cor e uma determinada causa, então apoiará qualquer outra que lhe seja conexa. Quando paramos e consideramos, uma pessoa ser anti-touradas não quer dizer que seja vegetariana, e vice-versa.
Outra questão que considero também estar relacionada com a limitação das caixas é a análise de contextos diferentes tendo como ponto de partida o nosso contexto. Um exemplo gritante é achar que, por exemplo, a divisão partidária americana se assemelharia a uma esquerda e direita portuguesa, quando estariam mais próximas de um neoliberalismo e de um conservadorismo dos bancos mais à direita da nossa Assembleia. É igualmente comum vangloriar países mais “tradicionalmente” de direita, associando-os a um liberalismo quase puro quando, geralmente, o seu sucesso é um equilíbrio entre medidas mais liberais no mercado com um reforço da proteção social.
Ainda dentro do contexto, a forma como os valores se externalizam diferem de país para país[1]: um movimento identitário não seria igual num país onde as tradições e comunidades não são oprimidas comparativamente com um país onde houve esse apagão. Aqui podemos olhar para o caso português e espanhol em que, durante as ditaduras, houve um enaltecimento das tradições de um lado e a sua opressão do outro[2],[3].
Com isto, mesmo que concorde que analisar a sociedade é sempre difícil e trabalhoso (e, por vezes, parece uma prisão infinita e masoquista), acredito que vale a pena fazer um esforço nesse sentido. Este desprender das categorias ou a compreensão de que um programa eleitoral engloba diversas vertentes e haver um com que nos identificamos mais e não tem de ser sempre o mesmo é mais libertador do que castrador. É igualmente libertador compreender que defender ou apoiar algo em determinado contexto ou momento não se torna definitivo. Não só porque estamos sempre a mudar (e connosco toda a nossa estrutura), mas porque há muita coisa que não é generalizável ou transferível a outros contextos.
Assim, é necessário repensar a nossa cobrança para com os outros de terem de ser completamente harmoniosos com os movimentos que defendem. Não para dar espaço a uma hipocrisia exacerbada, mas pelo reconhecimento da diversidade que cada um tem dentro de si, e, consequentemente, nos seus contextos. Este raciocínio ajuda-nos a desprender-nos da ideia (romântica) de que vamos encontrar todas as respostas num único partido e que nos identificaremos com ele sempre – uma estrutura feita de e para pessoas em constante mutação.
Por fim, como seres humanos, conseguimos apreciar as várias nuances e complexidades do mundo que nos rodeia e podemos também ser complexos na forma como interagimos com ele. Neste momento é de extrema importância não cair num círculo fechado com pensamento uniforme, apenas porque somos atraídos por uma parte deste.
[1] Rockey, J. (2009). Who is Left-wing and Who Just Thinks They Are?. [Ensaio, Departamento de Economia da Universidade de Leicester]. Handle: RePEc:lec:leecon:09/23.
[2] Melo, D. (2022). ‘Living Normally’: Everyday Life Under Salazarism. Eur. Hist. Q. 52, 200-220. [Ensaio, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa]. DOI: 10.1177/02656914221085129.
[3] Fishman, R. M. (2019). Messages of Transition: Fundamental Contrasts between Portugal and Spain. In Democratic Practice: Origins of the Iberian Divide in Political Inclusion. (pp. 28-70). Oxford University PressNew York. DOI:10.1093/oso/9780190912871.003.0002.

































































































