Estará o Governo a misturar o conceito de cidadania ativa com o de empreendedorismo, colocando totalmente de parte a responsabilidade social? Questões ousadas e aparentemente difíceis de responder, teremos que as desmistificar, desconstruir e permanecer de mente aberta e sem “amarras ideológicas” para compreendermos o estado atual da nossa nação.
Ora, pensem comigo, se há argumento que os professores, psicólogos, psiquiatras, sexólogos, pais, filhos, sobrinhos, netos, vizinhos, entre outros, têm afirmado nas redes sociais ultimamente é que a Educação Sexual (ES) e tudo o que a compõe é necessária. Não há dúvida aparente, ou há? Será mesmo um tema assim tão complexo?
O Governo achou por bem simplificar a educação ao omitir parte da identidade do adolescente que, se durante a puberdade já se encontra em constante ruminação enquanto desenvolve a sua identidade, mais confuso ficará sem orientação e liberdade para colocar dúvidas sobre o seu próprio corpo, identidade de género e vida sexual.
Reparem, é comum pensar-se que se banalizou o sexo e que as crianças e adolescentes estão precocemente em contacto com conteúdo pornográfico e que são influenciadas de forma a que se criem ideais radicalistas e de esquerda, ou pelo menos é o que se ouve… Por outro lado, se retirarmos medidas de liberdade de expressão nas escolas, onde os estudantes podem explorar num ambiente seguro e controlado, não estaremos a aumentar a probabilidade de recorrerem às redes sociais, aos media, aos sites pornográficos, ao ChatGPT, em vez de recorrerem a um professor ou aos pais? Já que a maioria trabalha com extremismo, não estaremos a obrigá-los a escolher uma ponta do espectro da informação? Irei mais longe, pensando a longo prazo, a escolher um extremo?
É um facto que as últimas gerações estão a crescer com espírito empreendedor e ativista, porém, não nos podemos esquecer que este ativismo tem maioritariamente duas vertentes, sendo que a mais prevalente tem sido a de direita, evitando termos extremistas, entre os jovens. Num universo em que já normalizamos que os direitos humanos são de esquerda ou de direita, os adolescentes banalizam a liberdade de expressão como uma arma de poder em que “vale tudo”.
Podemos argumentar que, já que as forças políticas estão a “evoluir”, a reconstruir as suas ideologias e o algoritmo do TikTok, os jovens estão também a reconstruir e/ou a reinventar algumas ideias do passado. Podem eventualmente até priorizar o empreendedorismo à informação acessível acerca da educação sexual, no entanto, cabe aos responsáveis pela educação facultar a informação, claramente necessária, para o desenvolvimento de um ser humano cujo corpo, na adolescência, é governado essencialmente pelas mudanças hormonais que impactam o desenvolvimento da sua inteligência emocional e pensamento crítico.
Bom, após esta notícia foi-nos dito que a ES não ia desaparecer. A República Portuguesa publicou uma nota explicativa no dia 23 de julho de 2025 com o título “Educação Sexual na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e no currículo do Ensino Básico e Secundário”. O governo fez questão de demonstrar que não devemos perder a esperança porque, de facto, a educação sexual não deixa de ser praticada. Ora, convido-vos a analisar esse documento comigo e a refletir sobre o que nos é dito.
É importante sublinhar os pontos aparentemente positivos desta “defesa assertiva” de que a ES está presente na formação dos jovens. Reparem que existe sim uma valorização da interdisciplinaridade, abrindo portas para uma visão holística da educação e do que a integra, se bem coordenada. De facto, está lá o combate à discriminação e preservação dos direitos humanos, ainda são mencionadas a diversidade, a orientação sexual e a identidade de género. Abordam projetos passados como o “Selo Escola Saudável”, está claro que se informaram sobre o que tem sido feito e que não pretendem cortar o investimento colocado nas instituições, salientando a importância da participação ativa da sociedade, neste caso das escolas.
Olhemos para o outro lado da moeda, ou das várias… Esta “carta” à comunidade foca-se essencialmente nos conteúdos anatómico-fisiológicos (ex: espermatogénese, meioses, ciclo menstrual, métodos contracetivos, etc.). Perdemos o foco de todo este debate, que é a vertente relacional, a empatia, a comunicação aberta, a escuta ativa, digamos, consentimento, o prazer, a diversidade sexual e de género, porque existe uma diferença entre estes conceitos. Faço um apelo ao Lev Vygotsky e ao seu construtivismo social para capacitar a sociedade dos termos criados e utilizados entre “nós” e ignorados pelo governo. Não falaremos dos papéis de género ou da prevenção da violência no namoro? Em que secção se inserem os temas “polémicos” e que realmente são debatidos pelos partidos políticos? Não vão cair no esquecimento por não serem ensinados ou falados nas escolas caríssimos Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) e Sr. Primeiro-Ministro.
O foco na biologia cria o risco da propagação de uma educação dita reprodutiva e não sexual integral, olhemos para a definição da OMS e da UNESCO, que realçam a dimensão emocional e ética da sexualidade.
No documento, ao mencionar a “violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas”, estamos a reduzir a diversidade e a aumentar a desinformação. É como se estivéssemos a incentivar questões arcaicas ao apagar os rótulos, criados pela sociedade na tentativa de diminuir o estigma e a discriminação. Os jovens não têm que adotá-los como seus se não o pretenderem, nem serão contaminados com a ideologia como muitos receiam. O objetivo é informar e educá-los acerca da comunidade em que vivem. Devo acrescentar que a violência contra as minorias, por exemplo, deve, sem dúvida, estar assinalada como uma prioridade. Porém, não será importante mentalizar os jovens do porquê de os incentivarmos a não recorrer à violência? Onde se insere a promoção positiva dos cidadãos LGBTQIA+? O que é a não-normatividade e a heteronormatividade? Vão abordar estes “palavrões”? Substituam o termo cidadania por convivência democrática se assim o desejarem, mas não se surpreendam com as consequências desses termos técnicos, na substituição dos mais inclusivos.
Ao lermos a nota explicativa, apercebemo-nos de que a base são as escolas. Estão ou deviam estar mais autónomas e, embora isto possa ser visto como um ato de fé por parte do Estado, não podemos ignorar que limpam as mãos ao diluir a responsabilidade central imposta ao governo. Se correr mal, a culpa é das escolas e dos professores. “Caso não tenham aplicado práticas consistentes e diversificadas não nos responsabilizamos”, talvez fosse mais honesto se estivesse exposto desta forma. Acentuam as assimetrias regionais e a dependência nas práticas, valores e ideologias das escolas e dos professores… Não existe a garantia de um plano fixo e de uma comunicação clara entre os docentes. Qual é a garantia de que comunicarão entre si e de que farão as ligações interdisciplinares que se listam? “Vou tirar tempo da minha aula para falar disto? Aposto que outro professor já falou.” Não assumindo que venha a ser o caso, não podemos ignorar que a carga horária dos professores é exorbitante e que já existia dificuldade em lecionarem os conteúdos propostos “a tempo e horas”. Será que a ES cairá numa invisibilidade curricular?
Parece-me que se não estava claro que o documento foi escrito por políticos, a partir do momento em que o MECI justifica a ausência da sexualidade com base no International Civic and Citizenship Education Study (ICCS, 2022), passa a estar. Reparem que é um estudo comparativo internacional de literacia cívica, não confundir o que o ICCS mede, que no fundo são resultados da aprendizagem, com o que deve ser ensinado. O povo português está saturado de identificar falácias e técnicas políticas nos discursos e medidas a implementar… sejamos humanos e vamos tentar compreender que a ES é um direito e que contribui para a saúde pública, não é um item opcional da cidadania avaliável pelo ICCS.
Termino com o aparente esquecimento da relação entre a saúde mental, educação sexual, autoestima, autoconceito, bem-estar emocional, prevenção de riscos e de violência. Todos estes, entre outros, são tópicos fundamentais e que moldam esta faixa etária, dos adolescentes e jovens adultos. A ausência da dimensão psicossocial traz-nos riscos e contrasta com as recomendações internacionais da OMS , UNESCO e Conselho Europeu, que afirmam ser cada vez mais necessária a integração da diversidade na formação de cada um de nós e de medidas que abracem esta necessidade não de forma vaga, mas sim clara, precisa e holística.
Referências
1-International Association for the Evaluation of Educational Achievement (IEA) (2022). International Civic and Citizenship Education Study 2022. IEA. Disponível em: https://www.iea.nl/studies/iea/iccs/2022
2-Ministério da Educação, Ciência e Inovação. (2025, 23 de julho). Nota explicativa: Educação sexual na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e no currículo do Ensino Básico e Secundário. Ministério da Educação, Ciência e Inovação. Disponível em: https://www.portugal.gov.pt/pt/gc25/comunicacao/documento?i=educacao-sexual-na-disciplina-de-cidadania-e-desenvolvimento-e-no-curriculo-do-ensino-basico-e-secundario
3-UNESCO (2017). Comprehensive Sexuality Education Implementation Toolkit: What is comprehensive sexuality education. UNESCO Health and Education Resource Centre. Disponível em: https://csetoolkit.unesco.org/toolkit/getting-started/what-comprehensive-sexuality-education
4-UNESCO (2024). International technical guidance on sexuality education: An evidence-informed approach. UNESCO. Disponível em: https://www.unesco.org/en/articles/international-technical-guidance-sexuality-education-evidence-informed-approach
5-World Health Organization (14 março de 2018). International technical guidance on sexuality education. World Health Organization. Disponível em: https://www.who.int/publications/m/item/9789231002595
6-World Health Organization (18 maio de 2023). Comprehensive Sexuality Education. World Health Organization. Disponível em: https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/comprehensive-sexuality-education


































































































