Para fim de semana, temo que tenha acordado prematuramente. O fulgor do sol matutino despertou-me instantaneamente assim que um único feixe luminoso adentrou por entre estores mal fechados e cortinas entreabertas. O sono anda leve ultimamente. Insisti no mau hábito de pegar de imediato no telemóvel. Justifiquei-me, como sempre: “um homem tem de se atualizar.” E começou: uma cacofonia de conceitos mal empregues. Li “populista” a designar uma política pública de apoio a famílias carenciadas, “socialista” a definir um partido de direita radical – este, sim, populista –, e “capitalista” a remeter-me para um jovem pré-pubescente que defendia o livre mercado e leu metade da obra As Seis Lições, de Von Mises.
Bom, o problema claramente estará nas redes sociais. Provavelmente será melhor consultar meios de comunicação com um filtro editorial mais rigoroso. Liguei então o televisor. E, apesar do inevitável salto de qualidade audiovisual em relação ao primeiro dispositivo utilizado, os resultados não diferiram muito. A forma estava lá, já o conteúdo carecia de si próprio. Ouvi de imediato uma líder partidária a proferir a expressão “socialismo de direita”. Admito que reagi de modo exagerado. Desliguei beligerantemente a televisão, bem como o interruptor da extensão à qual estava conectada, que, por sinal, também alimentava o router da operadora de internet.
Ser politólogo na era das redes sociais e da pós-verdade é sintetizado pelos dois parágrafos acima. É equivalente a frequentar um buffet asiático sem limite de reabastecimento do prato e ver uma multitude de clientes a proceder às misturas mais aberrantes: chow mein de gambas com pizza de ananás, sushi com jardineira de legumes ou crepe chinês com fondue. Longe de mim pretender limitar as escolhas gastronómicas dos outros, mas, se dependesse de mim, pouparia os nossos médicos, enfermeiros e restantes trabalhadores do serviço nacional de saúde a gastroenterites perfeitamente evitáveis.
Contudo, tal como não posso prevenir as visitas hospitalares dos meus concidadãos, também me vejo impotente diante do estado de permanente disfunção gástrica do nosso comentário político. Ainda que explique que populismo é, segundo Cas Mudde, um ideário de baixa densidade que preconiza a existência de um povo puro e elites corruptas, e não uma tipologia de programa público; ainda que previna os mais incautos que socialismo envolve a socialização dos meios de produção, e não a mera intervenção do estado na economia, de pouco ou nada adianta.
Sim, é certo que os conceitos nas ciências sociais carecem, por vezes, de consenso. Precisamente por isso é que o filósofo escocês Walter Bryce Gallie cunhou a expressão “conceitos essencialmente contestados”. A título de exemplo, a conceptualização de Cas Mudde diverge da de Pierre Ostiguy. Por outro lado, a Internacional Socialista fundada em 1951, hoje liderada por Pedro Sanchéz, terá um entendimento do socialismo que diverge um pouco do marxismo, assim como os socialistas utópicos que precederam Marx e Engels. Mas não trato aqui de meras disputas de sentido. Não, alerto para a utilização perniciosa de conceitos que visa criar espantalhos em torno de movimentos e atores políticos.
O que me preocupa em concreto não é o efeito polarizador deste estado da arte na opinião pública. A polarização é um efeito natural da política, que frequentemente organiza interesses antagónicos. Em concreto, o que me perturba é a divisão fundada em visões de mundo desinformadas. Prefiro mil vezes um adversário político competente, capaz até de esgrimir argumentos que contrariam brilhantemente os meus, do que alguém que se apoia em calinadas conceptuais. Mesmo que seja mais fácil expor o último ao ridículo, não é menos verdade que este geralmente consegue muito mais exposição algorítmica nos novos media.
Enquanto não se me esfumar a paciência, farei o possível para navegar na contracorrente do caudal de imprecisões que se criou. E o que me tem auxiliado a não desistir da contradição é um lema que as próprias vicissitudes me fizeram intuir: na pior das hipóteses, desocupa-se a tomada.