A Democracia em Palco: Quem Escreve o Guião do Voto?

“A beleza da democracia reside na sua construção contínua, na tensão entre liberdade e encenação, na responsabilidade coletiva de transformar a vontade do povo em narrativa vivida, ética e compartilhada.”

Tempo de leitura: 6 minutos

A democracia revela-se como o regime no qual o povo, livre e consciente, toma nas próprias mãos os ventos do seu destino. Esta lírica definição, tão simples à primeira vista, esconde uma tensão profunda na realidade: onde o poder do indivíduo é, na teoria, absoluto, mas, na prática (e inúmeras vezes), quase irrelevante. Pelo que é necessário entender: quem escreve, afinal, o guião da democracia? Quem define o que significa participar, escolher ou existir politicamente? Esta hipotética questão não se resolve somente com leis ou instituições; ela é, acima de tudo, filosófica, ética e existencial, por tocar a forma como nos relacionamos com a liberdade, e a responsabilidade coletiva.

O próprio ato de votar é, em si só, o símbolo mais evidente deste nosso paradoxo. Afinal, cada cidadão possui o direito de influenciar o curso coletivo, mas o efeito de um único voto é frequentemente insignificante diante das estruturas sociais, políticas e mediáticas que moldam a nossa perceção do mundo em geral. Já Rousseau sugeria que a “democracia ideal” reside na expressão da “vontade geral”1, enquanto o seu contemporâneo, Immanuel Kant, alertava que a legitimidade do voto não se mede pelo impacto imediato, mas pelo compromisso moral e racional do próprio cidadão2. Séculos mais tarde, Anthony Downs sistematizaria o paradoxo do voto3, onde racionalmente o eleitor tem um incentivo limitado para participar, mas, ainda assim, votar permanece um gesto carregado de significado ético e simbólico, afirmando a presença do indivíduo no espaço coletivo e reconhecendo a sua responsabilidade como construtor da sociedade.

Essa dimensão ética manifesta-se sobretudo no teatral ato de votar. Hannah Arendt destacava que a política é ação e discurso, não apenas decisão4. O gesto de entrar numa cabine de voto, preencher o boletim e depositá-lo na urna pode constituir-se como um ritual que sustenta a própria ideia de soberania popular. Onde cada eleição acaba por transformar-se numa espécie de teatro, conferindo aos cidadãos os papéis de ator e espectador da mesma peça. Para compreender plenamente esta dimensão performativa, importa recorrer a Goffman e à sua conceção de que a democracia se realiza tanto na ação como na encenação, sendo a legitimidade inseparável da perceção coletiva de participação5. Em última análise, o simples ato de votar, ainda que pareça um gesto orgânico, não é neutro, mas repleto de simbolismo, por manifestar a afirmação de uma cidadania ativa, mesmo quando os seus efeitos reais são claramente modestos.

O paradoxo e a teatralidade do voto revelam em si a complexidade ética da própria democracia. Participar é exercer um poder simbólico, onde é afirmada uma presença na esfera pública e um assumir da responsabilidade moral. Contudo, esse poder só se realiza plenamente através da consciência. O simples ato de participar, quando desprovido de reflexão, poderá levar à reprodução de linhas traçadas por forças invisíveis — partidos, meios de comunicação e narrativas dominantes. Cada voto torna-se, assim, um simples gesto ético e performativo, mas que exige ao cidadão uma compreensão do próprio papel na história coletiva da sociedade onde se encontra inserido. Tanto as escolhas como os silêncios conferem importantes contributos para este guião. A democracia escreve-se, afinal, nas entrelinhas do quotidiano: nos debates, nos gestos individuais e na maneira como interpretamos a vida em sociedade.

Pierre Bourdieu enfatizava que quem controla a linguagem, a educação e a visibilidade molda de forma mais eficaz a nossa perceção do que é legítimo6. Por sua vez, Habermas alerta que a democracia depende de uma esfera pública comunicativa7. O guião da democracia é, portanto, coletivo, fragmentado e constantemente reescrito. Este é escrito por políticos, intelectuais, movimentos sociais, algoritmos e cidadãos (conscientes ou não), e cada ato, cada palavra, cada escolha acrescenta linhas ao texto dessa narrativa coletiva.

Votar torna-se, portanto, mais que um procedimento burocrático. É um ato existencial. É um gesto que afirma a presença do indivíduo na esfera pública, mas também um ritual que sustenta a narrativa da soberania popular. Cada eleição é uma nova cena num eterno drama contínuo: os cidadãos entram no palco, desempenham os seus papéis, depositam os seus votos e saem, inúmeras vezes, sem perceber o efeito simbólico da sua participação. Mas é justamente essa repetição, essa teatralidade contínua, que mantém viva a democracia. A legitimidade do sistema depende do gesto performativo, da consciência de que todos têm o poder nas suas mãos, ainda que limitadamente.

O guião da democracia é, portanto, uma obra aberta e em constante construção ou mutação, onde a responsabilidade ética recai sobre cada indivíduo. É essencial reconhecer que votar vai além de um ato mecânico, que participar transcende a simples obediência a regras, e que a democracia se sustenta na consciência e reflexão de todos os que dela fazem parte. Mouffe lembra que a democracia carrega intrinsecamente conflito e pluralismo8, onde o aceitar dessa tensão é parte essencial da cidadania ativa. Em última análise, todos participamos na escrita do guião da democracia, mas fazê-lo conscientemente requer reflexão, ética e ação.

A beleza da democracia reside na sua construção contínua, na tensão entre liberdade e encenação, na responsabilidade coletiva de transformar a vontade do povo em narrativa vivida, ética e compartilhada. Votar, nesse contexto, não é apenas um ato político: é gesto simbólico, de ética performativa e lembrança constante de que cada indivíduo, mesmo limitado, consegue influenciar a história que escrevemos em conjunto. É nesse paradoxo, entre efeito concreto e significado moral, entre autonomia e encenação, que reside a força e a fragilidade da democracia que tanto nos exige refletir sobre as nossas ações e sobre o papel de cada indivíduo na nossa e bela construção coletiva.

“Liberty cannot be preserved without a general knowledge among the people, who have a right … and a desire to know.”
(John Adams, 1765)


Referências

  1. Rousseau, J.-J. (1762). Du contrat social; ou, Principes du droit politique. Marc-Michel Rey. ↩︎
  2. Kant, I. (2003). Perpetual peace: A philosophical sketch (T. Humphrey, Trans.). Hackett Publishing Company. ↩︎
  3. Downs, A. (1957). An economic theory of democracy. Harper & Row. ↩︎
  4. Arendt, H. (1998). The human condition. University of Chicago Press. ↩︎
  5. Goffman, E. (1959). The presentation of self in everyday life. Anchor Books. ↩︎
  6. Bourdieu, P. (1990). The logic of practice. Polity Press. ↩︎
  7. Habermas, J. (1989). The structural transformation of the public sphere: An inquiry into a category of bourgeois society. The MIT Press. ↩︎
  8. Mouffe, C. (2000). The democratic paradox. Verso. ↩︎

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João Luís Pinho Branco Ferreira, nasceu a 31 de março de 1994 e é natural de Ovar. Com formação académica em História e uma ligação forte ao associativismo político.

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