O parlamento aprovou, no passado mês de julho, as propostas que preveem que a violação passe a ser um crime público em Portugal. Mas será que a vítima, depois de já “objetificada” pela violação, não é transformada em símbolo para a moral coletiva? Da dor íntima à moral coletiva, a (liberdade da) vítima perde-se entre agressor e Estado.
O consenso político
Tornar a violação um crime público já tinha sido discutido várias vezes nos últimos anos, no entanto, nenhuma proposta tinha sido passada porque PS e PSD argumentavam que deveria ser a vítima a decidir se apresentaria queixa ou não, optando que a violação se mantivesse um crime semipúblico.
Todavia, assistimos agora a uma mudança de paradigma, tendo em conta que a alteração legislativa mostrou ter agora uma maior amplitude do apoio parlamentar. Ora, tais propostas de tornar a violação um crime público foram apresentadas pelo Bloco de Esquerda (BE), Livre e PAN, contanto com o voto favorável destes e, ainda, do PSD, CDS, Iniciativa Liberal, Chega, JPP. Já os grupos parlamentares do PS (à exceção de alguns deputados, que votaram a favor) e do PCP optaram pela abstenção.
O consenso político é revelador: quase todos convergem na necessidade de reforçar a punição da violação, e a recente decisão de a tornar crime público foi anunciada como uma conquista da justiça e dos direitos humanos. À primeira vista, parece indiscutível que mais proteção e mais responsabilização significam menos impunidade. Mas a questão permanece: será isto realmente uma vitória da vítima ou, pelo contrário, uma vitória sobre a vítima?
De onde viemos e para onde vamos
Nas últimas décadas, houve, sem dúvida, um caminho notável na proteção dos direitos humanos e na liberdade de autodeterminação, sendo que os vários movimentos sociais foram determinantes para expor uma justiça marcada por preconceitos patriarcais, assentes numa ideia de que determinados indivíduos têm uma predisposição “natural” para procurar sexo e, por inerência, de que a outros [indivíduos] caberia apenas resistir para proteger a sua virtude ou permitir porque é a “natureza das coisas”.
Essa visão contaminou durante demasiado tempo a sociedade e, como reflexo, também a justiça. A transformação dos chamados “crimes sexuais” – antes centrados na defesa de costumes e da moralidade – em crimes que protegem a pessoa como indivíduo livre e pleno, focando-se na liberdade e na autodeterminação sexual, foi um marco histórico. Exemplos claros desta evolução são a criminalização da violação conjugal, a consagração do princípio de que “não é não” (movimento no means no), a centralidade do consentimento na esfera sexual e o fim da exigência de violência física ou resistência heróica para o reconhecimento do crime.
Tudo isto representou um avanço social com repercussões legislativas e punitivas, porém, a passagem da violação de crime semipúblico para crime público pode abrir agora uma fissura difícil de ignorar.
Mas, afinal, o que significa ser “crime público”?
De forma simplista passar a ser um crime público significa que o procedimento passa a ser como que “automático” e independente da manifestação da vontade da vítima. Ou seja, autoridades competentes podem (e devem!) investigar e avançar com todo o processo-crime, mesmo sem queixa formal da vítima, visto que qualquer pessoa pode dar notícia do crime. Na prática, significa que deixa de ser necessária a queixa da vítima para que o sistema atue.
A bondade da medida é clara: menos dependência (no caso, da queixa de uma pessoa em exclusivo), maior punição e, em princípio, maior proteção. Porém, há um preço a pagar. Será mesmo para proteção da vítima? Quando colocada a questão nestes termos, o paradoxo é gritante. A violação é um crime enquadrado pelo nosso Código Penal como crime contra a liberdade sexual, liberdade essa que é também direito fundamental consagrado na Constituição da República Portuguesa.
Estamos, então, a viver a paredes-meias entre a proteção e a imposição. O crime de violação é um ilícito eminentemente pessoal, isto porque é um crime que atinge de forma brutal a esfera íntima da pessoa, a sua autodeterminação e a sua dignidade. Ignorar a vontade da vítima – que, note-se, já foi ignorada na própria violação –, é, de certo modo, trair a própria natureza do bem jurídico que se quer proteger:a própria vítima,
Se antes a classificação como crime semipúblico permitia que fosse a vítima a decidir se queria ou não a abertura de um processo, agora essa autonomia desaparece. O Estado impõe-se. E a questão pode tornar-se ainda mais desconfortável: o que significa proteger a liberdade sexual se, no mesmo gesto, se limita a liberdade da vítima de dizer “não quero este processo”?
Será uma ânsia coletiva de punição?
Transformar a violação em crime público visa impedir que o agressor escape, mesmo que a vítima se cale. Porém, essa solução pode representar para a própria vítima uma nova violência: ser forçada a reviver o trauma num julgamento público. Não se trata de defender a impunidade, mas de recusar a lógica paradoxal em que a vítima seja usada como instrumento — primeiro objetificada pelo agressor, depois instrumentalizada pelo Estado como veículo da moral coletiva.
O direito penal deve respeitar a liberdade da vítima, incluindo a de escolher o silêncio e não transformar a sua dor em espetáculo judicial. As conquistas dos movimentos sociais não foram feitas para que determinados indivíduos fossem falados por outros, mas para que pudessem falar por si mesmos. Se a autonomia foi a bandeira dessa luta, não se perderá agora no altar da punição coletiva? Proteger as vítimas nunca pode significar falar em nome delas e, ainda menos, contra elas.