Natureza e Relação do Objeto-em-si e dos Corpos

“Não é o objeto que é o problema, mas, sim, o que fazemos com ele – e como o fazemos.”

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A propósito da proibição dos telemóveis nas escolas, no primeiro e segundo ciclo, bem como a discussão que se gerou, inevitavelmente, nas redes sociais, em torno de leis para o sector comercial das apostas desportivas, casinos online e demais “jogos”, ocorre-me a reflexão sobre a proibição de tudo aquilo que consideramos nocivo para o humano, seja a nível físico (danos físicos), emocional (colocando em perigo as capacidades cognitivas e físicas inerentes a disfunções), social (a forma como a experiência do objeto nocivo pode influenciar as relações sociais) e até financeiro (no sentido do uso questionável dos bens económicos).

Do ponto de vista de danos físicos, este objeto nocivo poderá colocar em causa a integridade física do indivíduo, diminuindo ou retirando a capacidade do indivíduo de responder aos estímulos provenientes do ambiente da forma como desejava. Não cabe a mim tecer considerações éticas sobre o quão graves ou incapacitantes são as lesões físicas. Também não cabe a mim tecer considerações éticas sobre como essa incapacidade pode afetar a vida emocional e social do indivíduo. No máximo – agora sim, por uma questão de moral pessoal –, posso estudar tudo isso e refletir sobre os resultados.

No que diz respeito ao plano emocional, como referi sucintamente em cima, sem dúvida que este plano da vida do indivíduo é o mais afetado pelo objeto nocivo. Não me querendo alongar muito sobre considerações deste campo (facilmente o leitor encontrará uma melhor abordagem ao tema através dos livros de António Damásio), apraz-me comentar, apenas, que a influência do objeto nocivo na vida emocional do indivíduo deixa marcas ao nível da bioquímica do cérebro e, consequentemente, pode deixar marcas para a vida toda. Por isso mesmo, parece ser o principal plano de investigação sobre a relação entre os objetos nocivos e o indivíduo, no seu total corpo e experiência de vida. Quanto ao assunto dos sites de apostas, casinos e demais “jogos”, sendo um assunto em que eu próprio estive envolvido durante cinco anos, quero acrescentar que, tal como na Bolsa de Valores, os princípios das apostas desportivas e demais “divertimentos” nesta área mexem diretamente com os mais basilares princípios e processos evolutivos da mente. Não é qualquer pessoa que está preparada, emocionalmente e racionalmente, para estar “neste mundo”.

Por fim, sendo o humano um animal consequentemente social (digo consequentemente porque defendo a tese de que não somos intrinsecamente sociais), toda esta influência do objeto nocivo recai, inevitavelmente, sobre as competências sociais do indivíduo, bem como as suas capacidades para gerir os seus recursos económicos.

É importante salientar que não estou a dizer que tudo isto vai acontecer inevitavelmente, e da mesma forma e intensidade, em todos os indivíduos. No entanto, todos estes planos são passíveis de atenção, nomeadamente, como referi em cima, o plano emocional. No fundo, somos organismos, no presente, essencialmente emocionais, muito mais do que racionais.

Chegando a este ponto, será importante, sem dúvida, enumerar alguns dos objetos que, em linguagem corrente, chamamos de nocivos. São eles os telemóveis, as redes sociais, alguns jogos de computador, o tabaco, as drogas (termo genérico para nos referirmos a químicos de consumo público), a pornografia e, de igual forma, todos os objetos passíveis de conter propriedades potencialmente catalisadoras de dependências.

É aqui que entra a minha discórdia, perante o debate público e a concordância da implementação de proibições. Na minha visão, os objetos-em-si não têm propriedades éticas, nem sociais, inerentes. É o humano, na sua linguagem e simbologia, que comete o erro, a ilusão, de fazer determinadas associações entre objeto e utilidade. É o humano que define a utilidade e valor do objeto, não o objeto em si. Os objetos têm características químicas e físicas que, em contacto com determinados corpos, podem causar reações. Reações várias, em vários graus e choques em cadeia das reações que causam.

Por isso mesmo, será importante saber separar o objeto-em-si das circunstâncias em que se encontra o corpo no qual ele entra em contacto. Com respeito à inteligência do leitor, por corpo, quero referir o corpo físico do humano (no qual estão incluídos o corpo cerebral, mental e emocional).

Posto isto, parece-me questionável que a forma mais eficaz seja através da proibição destes objetos, ao invés de uma educação para a consciencialização das características dos objetos, da forma como elas podem ter influência no corpo humano e, fundamentalmente, de como o corpo humano funciona em si e como pode reagir a estas influências. E não apenas o corpo humano, mas qualquer organismo é influenciado pela química.

Parece-me importante realçar, portanto, que, caso queiramos eficácia e eficiência, o ataque não deverá ser através da proibição ou ilegalidade do objeto, mas, sim, por meio da educação do indivíduo, não para uma formatação do padrão do comportamento, mas, sim, com o objetivo de que o indivíduo compreenda, por si mesmo, tudo o que está em causa, nesta relação entre objeto e corpo. Por tudo isto, defendo que o auge da ética talvez seja, este mesmo, a procura do autoconhecimento (não no sentido romântico) ao invés do policiamento.

Bem sei que, politicamente, importa mais aquilo que resulta a curto prazo, visto que é isso que “mostra serviço”, dá crédito e credibilidade. Mas, se procuramos medidas eficazes e que tenham a capacidade de evitar a coerção sobre o indivíduo, parece-me sensato que se pense em medidas mais estruturais do que pensos rápidos.

Os objetos não têm moralidade, apenas propriedades; atribuir-lhes “culpa” é fugir da verdadeira responsabilidade – o conhecimento do próprio humano sobre si e sobre os efeitos desses objetos. Não é o objeto que é o problema, mas, sim, o que fazemos com ele – e como o fazemos. A crítica a ser feita é ao comportamento humano, não ao objeto.

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A esticar a corda desde 1986, nascido em Coimbra. Nos últimos dez, através da Filosofia e Psicologia, tento entender os mecanismos de funcionamento entre os corpos e ambiente.

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