Política com pouca chica

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Conceda-me o leitor a oportunidade de o abordar com uma analogia de viajante desprevenido, à mercê das mais desastrosas vicissitudes gastronómicas: o debate político em Portugal interessa menos do que uma sandes de panado de estação de serviço. Tal como a taciturna e plastificada refeição que viu demasiados dias num frigorífico situado num qualquer apeadeiro da A1, a conversa sobre os nossos destinos coletivos é assaz inflacionada, mas tem pouca chicha e sabe a velho. Procuram apetrechar de enfeites a mesma velha cantiga do “reduzimos ou não impostos?” e agora até a adornam com uma cacofonia pseudochauvinista em torno da imigração, mas só enganam incautos. Há um medo de desenvolver temas hoje considerados heterodoxos, não vá o interlocutor apelidar-nos de marxistas ou keynesianos ossificados, que não se desapegaram de velhas soluções – como se o laissez faire não fosse mais geriátrico do que o barbudo do manifesto. E, na tentativa de preservar o suposto novo, que já é novo há décadas, só o cheiro a mofo nos sobra.

O sociólogo William Davies argumenta que o zeitgeist intelectual de revivalismo liberal que teve no colóquio Walter Lippmann (1938) e na fundação da Sociedade de Mont Pelerin (1947) dois momentos cruciais é, essencialmente, produtor de um efeito de desencanto da política pela economia. Não obstante, creio que essa amálgama de posturas que informou aquilo a que intitulamos de neoliberalismo poderá ser ainda conceptualizada como um processo de politização e institucionalização da antipolítica.

A atitude paroquial relativamente ao Estado – exemplarmente traduzida pelo semiprovérbio popular “ele está cá e eu estou cá” – torna-se política de estado. Se não existe sociedade, tal como rematou Thatcher, prescreve-se uma governação despida de coletivo. A economia refugia-se da jurisdição do poder democrático. Mas reflitamos: se a economia assenta sobre a alocação de recursos – sobre a inferência de Lionel Robbins quanto à escassez, discutamos em ocasião mais apropriada –, então em democracia discute-se exatamente o quê? Se 90% é agora objeto do fetiche tecnocrático, resta-nos pão ralado envolto em ovo, já que a carne só encarece.

Com este pano de fundo, emergem os antipolíticos por excelência. Venham eles: os Trumps, os Bolsonaros, os Venturas e os Salvinis. O populismo reacionário, fundado nesta noção de restauração de um passado idílico bem resumido pelo slogan Make America Great Again, sofre de uma contradição na sua génese. É antipolítica na medida em que lhe atribui toda a sorte de corrupção, mas simultaneamente promete a ressurreição da boa política, da boa democracia, aquela em que a soberania popular, de facto, significa algo. Daí resulta a dimensão de um populista relutantemente político, aludida por autores como Cas Mudde. O outsider adentra pelo terreno pantanoso dos interesses partidários, precisamente para o limpar. Eis o drain the swamp. Bem sabemos que entre a promessa e a sua concretização tem havido uma enorme distância, mas já o enfatizamos em demasia.

O que interessa é que o produto perfeito da antipolítica explora um sentimento transversal a um conjunto de setores das massas. E, uma vez que a moda dita que se mencione as perceções, será que é mero fogo de vista? Ou então esta noção de uma política descafeinada é consequência lógica do pensamento económico hegemónico das últimas quatro décadas? A exigência da predominância da vox populi ou da volonté generale não reside num microcosmos deslocado do real. Não, é o familiar bastardizado da ideologia neoliberal, a não ser que demonstre utilidade. Bolsonaro descortinou a sua em Paulo Guedes, um resíduo da geração dos Chicago Boys. Na década de 90, tal como descrito por Kenneth Roberts, Fernando Collor de Mello, no Brasil, e Carlos Menem, na Argentina, encontraram-na em si próprios. E, porque não incluir no elenco dos chamados populistas neoliberais Silvio Berlusconi, precursor do alegado super empresário que hoje se enfuna na sala oval?

Curiosa a referência pronta a 1984 quando se simplesmente principia a sugestão de investimento público ou coordenação de setores estratégicos, mas não retiveram assim tão bem a lição. Afinal, não há nada que recorde mais a novilíngua e o duplo pensar orwellianos do que mil e uma tentativas de revestir de novidade conversas sobre baixar impostos e sobre o quinquagésimo livro de finanças pessoais/autoajuda que plagia o já pouco original “Pai Rico, Pai Pobre”, de Robert Kyosaki.

Livrem-me desta chaga. Na estação de serviço também há pão com chouriço.

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Mestre em Ciência Política pela Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. Dono de um canal de Ciência Política com mais de 10.000 subscritores no Youtube. Autor do podcast Pura Ideologia e do livro Monólogos a Dois.

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