Todo o ato de governação é, na sua essência, uma declaração de prioridades. A decisão de subsumir a pasta da Cultura numa estrutura ministerial partilhada com a Juventude e o Desporto não é, pois, um mero ajuste administrativo ou uma organização funcional da casa governamental. É um sinal que exige uma hermenêutica cuidada.
Para o observador apressado, soam os alarmes da desvalorização, da perda de autonomia e da previsível asfixia orçamental. Contudo, numa análise mais profunda, quase ao estilo cartesiano, e que nos obriga a duvidar da primeira impressão, lanço o desafio: poderemos encontrar, nesta aparente diluição, as sementes de um paradigma inovador? A questão não é se a Cultura perdeu um ministro, mas se Portugal pode ganhar uma nova e mais dinâmica visão para a sua identidade e projeção.
Mas, de forma tipicamente portuguesa, comecemos pelos exemplos externos. De um lado, França, onde a doutrina Malraux – que em 1959 consagrou a Cultura como uma pasta de soberania, autónoma e com peso político – demonstrou ser uma das mais rentáveis apostas estratégicas do Estado. E, note-se, que o retorno não é apenas simbólico. É expressivamente material, e que se traduz em dividendos económicos substanciais gerados pelo turismo cultural, pela pujança das suas indústrias criativas e por uma valorização patrimonial que é, em si, uma marca global. O caso francês não é um argumento, é a evidência clara do poder de uma política cultural independente e devidamente financiada, entre parte pública e privada.
Do outro lado do espectro, a experiência italiana, que por oposição, serve de advertência. As recorrentes experiências de diluição da pasta da Cultura, frequentemente aglutinada com outros setores como o Turismo por exemplo, revelaram uma vulnerabilidade crítica. Embora se possam identificar dinâmicas pontuais em eventos que mobilizam diferentes públicos, o resultado estrutural tem sido o subfinanciamento crónico e a erosão da capacidade de conservação do seu património inestimável. As preocupações de especialistas e da sociedade civil não são, em Itália, um mero lamento! São sim a constatação factual de que, sem autonomia e prioridade estratégica, o legado histórico se torna no elo mais fraco da cadeia governativa, um risco que Portugal não se pode permitir ignorar.
Bem mais perto, em Espanha, o Ministério da Cultura já foi agregado ao do Desporto e, noutras alturas, à Educação. Estas flutuações, umas vezes mais semânticas, outras mais estruturais revelaram uma verdade incómoda: quando a Cultura não possui um mandato claro e um líder com assento autónomo à mesa do Conselho de Ministros, a sua agenda torna-se vulnerável, reativa e suscetível de ser ofuscada por pastas com maior tração popular ou urgência política percebida. E a Cultura, o Património e a Arte no geral – que apesar do belo ofuscar com beleza o espírito – não ofusca a mente racional, os problemas quotidianos nem os números, contas e orçamentos.
Contudo, aqui reside o cerne da ilusão estratégica: onde muitos veem uma perda, um estratega deve procurar a vantagem assimétrica. Esta fusão num “superministério”, se habilmente orquestrada, pode ser mais do que uma mera contenção de custos; pode ser o catalisador para um ecossistema integrado de desenvolvimento humano e projeção nacional, de valorização do território, e de criação de emprego. Vejamos como, ao juntar pastas ministeriais, se poderiam alcançar diversas sinergias.
Comecemos pela Cultura e Juventude. Possivelmente, a ponte mais óbvia e, talvez por isso, a mais subaproveitada. Esta sinergia, significa combater a iliteracia cultural nas novas gerações através de programas que integrem o currículo escolar com o acesso a teatros, museus e monumentos. Significa usar as plataformas digitais, o território natural dos jovens, não como distração, mas como palco para novas formas de criação e fruição cultural – desde a arte digital, dos eSports, aqui entendidos como fenómeno cultural – até à revitalização de ofícios tradicionais através de novas tecnologias.
Por outro lado, aparentemente de associação menos imediata, temos a sinergia Cultura e Desporto. Contudo, aqui, não me atreverei a antever possíveis dinâmicas, mas fico expectante por ver as medidas que podem surgir desta rara combinação.
O sucesso desta “trindade” ministerial depende da capacidade de se criar uma visão partilhada que transcenda os silos, as barricadas de cada um dos sectores, a pluralidade de cada agente na promoção de uma política. Uma visão que entenda que um jovem com formação cultural é um cidadão mais completo, e que um país que se projeta através do desporto e da cultura é uma nação com uma identidade mais robusta e atrativa no cenário global.
Apesar do potencial para uma disrupção positiva, os riscos são reais e não podem ser ignorados. A navegação nestas águas exige pragmatismo, vigilância e a coragem de proteger o que é essencial. Riscos como canibalização orçamental, falta de autonomia na gestão do Património, e a ponte para a “economia real” são riscos reais, sérios e constantes.
Por isso, deixo de sugestão à nova equipa superministerial algumas medidas charneiras para que a Cultura não se perca entre a Juventude e o Desporto. A reforma da Lei do Mecenato, o fomento da iniciativa privada, particular, a gestão em parcerias público-privadas, a desburocratização dos processos culturais, uma Via Verde para a Cultura, da revisão dos estatutos dos profissionais da cultura, seriam alguns dos tópicos mais urgentes a abordar por Margarida Balseiro Lopes.
Terminando, e com uma dose de ironia amarga, talvez a fusão mais lógica, se o objetivo fosse a sinergia pura e dura, nem fosse com o Desporto. Se calhar, mais valia ter juntado a Cultura ao Ministério da Economia. Pelo menos, forçaria o reconhecimento explícito do seu peso económico e a necessidade de a tratar como um setor produtivo estratégico, e não como um luxo acessório ou programático. Até porque as empresas e a sociedade civil, como aconteceu durante séculos, devem ter um peso importante no fomento cultural. Ou, de maneira apenas um pouco menos jocosa, com a Educação. Não para que se definissem linhas de programação cultural, mas para – finalmente – termos uma população interessada em Cultura.
Reafirmo com veemente convicção que a Cultura não é um adorno! É a memória de longo prazo de uma nação e a sua imaginação prospetiva. Tratá-la com a inteligência estratégica que merece não é uma opção, mas é a única forma de garantir que o futuro que construímos tem a profundidade e a resiliência do passado que herdámos, seja com um “mini-stério” ou “superministério”. A bola está, agora, do lado do novo ministério, mas cabe à sociedade civil, aos agentes do setor e a todos nós fiscalizar, exigir e colaborar.