Para nascer precisamos de habitar um corpo. Não escolhemos nem as circunstâncias nem o corpo onde nos desenvolvemos, mas ao longo da vida a estrutura orgânica constituída por triliões de células e protegida por um frágil órgão, a nossa pele, é também ela definidora da nossa identidade irrepetível. Tanto individualmente como coletivamente, a maneira como lidamos ou ditamos os parâmetros que moldam os nossos corpos diz tanto da sanidade integral dos mesmos como do estágio cultural em que nos encontramos. Precisamos de um corpo, mas parece com tanto que o queremos moldar e modificar, que o renegamos.
Provavelmente, nunca estivemos tão conscientes das corretas estratégias e comportamentos em manter o autocuidado e, paralelamente, parece que nunca violentamos e recriminamos tanto o que não configura um padrão corporal. Sabemos como incutir saúde a um ideal plasticizado, mas ostracizamos a particularidade, a incompletude, o acaso, a naturalidade biológica. Por um lado, veicula-se a prioridade da beleza interior, a aceitação do corpo como ele é, o de evitar fazer comparações e sempre reconhecer tudo o que de positivo cada um pode desempenhar com limitações, porém o que impera nas representações sociais são a volatilidade e as aparências, as mensagens de mercado, as aspirações irreais de beleza, os ídolos tolos, as campanhas publicitárias que nos sugam em várias frentes e incutem a constante insatisfação, com o que precisamos fazer mais, sacrificar mais ou adquirir mais, para sermos aceites.
Culturalmente, como coletivo, aquilo que permitimos fazer aos nossos corpos, com a justificação de que é para o bem e a saúde dos mesmos, entre medidas rígidas e estilizadas, tem tomado proporções e resultados deveras caricatos e violentos, principalmente direcionado às mulheres. E não é apenas nas situações com consequências extremadas, como nos distúrbios alimentares ou no transtorno dismórfico corporal, é na maioria das nossas perceções diárias de autoimagem, é na forma como nos analisamos ao espelho, sempre a encontrar falhas. Só em 2022, a marca Dove fez em Portugal um inquérito sobre o body shaming, onde revelou que duas em cada três mulheres eram vítimas de comentários negativos sobre a sua aparência, designadamente com o estigma do envelhecimento.
Se fizermos uma prospeção no mercado, há produtos para todas as partes do corpo e para todas as idades! A listagem é desarmante. Além daqueles que têm fins especiais, preventivos ou terapêuticos, nos produtos de estética (alguns também de higiene) temos dezenas, começando pela face, como os tonificantes, desmaquilhantes, esfoliantes, géis, hidratantes, séruns, clareadores, antirrugas, máscaras, protetores. Para o cabelo, há champôs variados tantos como os cabelos, há condicionadores, espumas, colorantes, modeladores, óleos, fixadores, finalizadores. Para o restante do corpo, há tudo o que o marketing possa alcançar: loções, perfumes, desodorizantes, sabonetes, anticelulíticos, depilatórios, bálsamos, regeneradores, revigorantes, multiusos, etc. Entre os produtos de maquilhagem mais umas dezenas, como as bases, pós, corretores, bronzeadores, riscadores, sombras, rímeis, batons, iluminadores, fixadores, etc. Marcas internacionais como a Bubble Skincare, direcionadas a um mercado juvenil, cativam precocemente e subversivamente as/os impreparadas/os menores a fazerem diretos ou publicidade nas suas redes sociais, em troca de produtos que recebem da empresa. A comunidade virtual destes jovens é imensa!
Atualmente, só no que respeita às unhas – pequenas porções de queratina nas extremidades dos dedos – tem sido impressionante o crescendo de mercado de manicure e de nail design, com um receituário estético de esmaltes muitas vezes duvidoso, que atinge crianças e adolescentes (com aparências precocemente erotizadas), mas com satisfatório ou alto rendimento dos seus empresários. O impacto ambiental e as problemáticas éticas que a multiplicação ilimitada tem no tanto que consumimos, muitas vezes pouco consciente e desnecessário, é algo que nos deve transformar.
Sim, procuramos a beleza incessantemente e as suas possibilidades de manifestação, mas a sua definição não é isenta de pressupostos mais exigentes. A beleza maior é justa, inclusiva, harmoniosa, diversificada, verdadeira, orgânica e expressiva ou oculta. A estética de ginásio, fabricada e reassumida por tantos, com o excesso de estilização, de objetificação, de artifícios, sem expressão ou autenticidade dos corpos completamente depilados, tonificados, das hormonas musculares inflamadas, dos implantes mamários que pouco somam, tantas vezes protagonistas do lixo televisivo e das redes sociais, não pode ser a supremacia e sentido único da beleza corporal. Um corpo deveria ser dignificado e entendido também na sua essência, nos seus estágios, nas suas falências, na crua anatomia e fisiologia, com os seus tecidos, fluidos, órgãos e estrutura óssea. Não podemos nos transformar em avatares virtuais de nós próprios.
Com a natureza, os animais, o conhecimento e as artes, aprende-se muito do que pode ser a justa e original beleza. Com a irreverência e rebeldia também. Na música, temos várias/os intérpretes que desconstroem e questionam os padrões de beleza corporal vigentes, como Billie Eilish, Capicua, Carolina Deslandes. A cantora espanhola Valeria Castro expõe bem esta reflexão na sua música “Tiene que ser más fácil”. No filme recente de 2023, “Barbie”, de Greta Gerwig, levantam-se, com muita inteligência, questões bem atuais referentes aos papéis de género e estereótipos femininos e masculinos, que não são nada inofensivos nos seus resultados. Estudos de género que, infelizmente, estão a ser tão estupidamente desacreditados, até para conservar o conceito oco de masculinidade que não empodera, mas caricatura os homens! A artista japonesa Kumi Kaguraoka, apesar de ter entrado pela formação do Design, utiliza a construção de objetos ou originais dispositivos mecânicos de reconstrução corporal para questionar e extremar criticamente os limites dos nossos ideais de beleza, tão dolorosos e difíceis de manter. Do mundo da moda, e fora dos jogos rentáveis e manipulações das indústrias, o Design de Moda pode também ser uma arte maior, pela consciencialização, comunicação e originalidade que dá a cada corpo e não pela massificação ou padronização do consumo. Na entrevista que a escritora Isabela Figueiredo deu à “Cap Magellan” e a respeito do seu livro muito elogiado de autoficção, “A Gorda”, diz: “Quando era gorda, sentia que as pessoas me tratavam como se tivesse uma deficiência física. As pessoas com deficiência física não merecem ser maltratadas. Porque é que as pessoas com algo diferente, fora do convencional, são postas de parte?”
Sabemos que a obesidade, caraterizada por um índice de massa corporal (IMC) igual ou superior a 30 kg/m², é considerada uma doença segundo a Organização Mundial de Saúde, trazendo grande sofrimento e limitações para quem a vive. Há que ter empatia e não recriminação. A obesidade é diferente de ser gordo ou gorda, ou seja, ter mais peso e gordura do que é o equilíbrio dos parâmetros vigentes. O risco maior de desenvolver várias doenças apresenta-se neste quadro, mas também entre tantos outros fatores que as pessoas não julgam tanto, por não serem tão visíveis. É justo que o estigma da gordofobia seja contrariado e desconstruído, tantas podem ser as formas de se estar, de nos apresentarmos socialmente, sem a tirania do que nos é imposto como uma sentença fatal. Contrariemos a cultura de centro comercial que nos esmaga com falsas necessidades, do clima falsamente democrático e sim moralizante, capitalista e afunilador. As celulites da perceção é que são nocivas.
Temos de tal forma a desmedida capacidade e perigosa vontade de efabular, imaginar e ir além do real que é lá que acabamos por viver, numa dimensão escorregadia, de representação iludida, semelhante à Disney World do terror, onde já não queremos usufruir da beleza do real, mas da estilização de uma iconografia excessivamente sacrificada, de um “amor” que nos dão mastigado, esterilizado e controlável.