Pensar Não Chega: A hipótese do marcador somático

"Não tens argumentos racionais sólidos, mas sentes um aperto no peito, uma ligeira náusea, como se o corpo dissesse: “não vás por aí”. Esse mal-estar é um marcador somático. É o resultado de situações anteriores. [...] E antes que a mente racional organize uma lista de prós e contras, o corpo já deu o seu parecer. Já sinalizou. O marcador somático, como um farol interno, pisca-te um aviso. E, muitas vezes, é aí — no sentir, e não no pensar — que está a decisão certa."

Tempo de leitura: 8 minutos

Imagina que estás numa pastelaria da Baixa da tua cidade, a beber um café e a olhar para a montra. Lá fora passa a vida, e cá dentro perguntas-te porque é que escolheste este pastel de nata e não a queijada? A resposta não está apenas na fome, mas num emaranhado de emoções, memórias e sinapses — com um quê de seguir o coração à mistura que, segundo António Damásio, não é folclore, é neurociência.

Damásio formulou, em Descartes’ Error (1994), a ideia dos somatic markers: sinais corporais — coração a palpitar, suor nas mãos — que são interpretados pelo córtex pré‑frontal ventromedial (vmPFC) e pela amígdala, e usados para nos guiar perante decisões complexas. Estes marcadores emergem de experiências passadas e antecipam o problema antes que o pensamento tenha sequer começado.

O exemplo clássico: um paciente com lesão no vmPFC, Elliot, mantinha a inteligência, mas perdia o rumo nas escolhas importantes: emprego, casamento, dinheiro. Porquê? Perdeu a capacidade de gerar marcadores somáticos. Um cérebro com janelas, mas sem cortinas — vê, mas não sente.

Ou então, pensa noutro cenário: estás a considerar aceitar um novo emprego. O salário é melhor, o cargo soa importante, o escritório tem vista para o rio. Mas quando sais da entrevista e entras no carro, há algo que te incomoda. Não sabes bem o quê. Talvez tenha sido a maneira como o chefe te olhou. Ou aquele silêncio desconfortável quando perguntaste sobre o ambiente organizacional.

Não tens argumentos racionais sólidos, mas sentes um aperto no peito, uma ligeira náusea, como se o corpo dissesse: “não vás por aí”. Esse mal-estar é um marcador somático. É o resultado de situações anteriores. Talvez um emprego onde te sentiste manipulado, ou um chefe que era cordial, mas frio. O teu cérebro lembra-se, mesmo que tu não lembres conscientemente.

E antes que a mente racional organize uma lista de prós e contras, o corpo já deu o seu parecer. Já sinalizou. O marcador somático, como um farol interno, pisca-te um aviso. E, muitas vezes, é aí — no sentir, e não no pensar — que está a decisão certa.

A amígdala processa emoções primárias (medo, prazer), o vmPFC integra essas emoções e conecta-as ao passado. Pacientes com lesões em qualquer destas zonas perdem a intuição adaptativa. Isto é, continuam a escolher o caminho que dá maior recompensa imediata, ignorando o futuro. Estudos com o Iowa Gambling Task confirmam-no: sem essas áreas, escolhes mal e repetes erro após erro — é a “miopia para o futuro”.

O hipocampo, estrutura do lobo temporal medial, atua como um arquivista da experiência: codifica, armazena e recupera episódios vividos, organizando-os no tempo e no espaço. A seu lado, a amígdala, profundamente ligada à resposta emocional, avalia a carga afetiva desses mesmos episódios, ativando, por exemplo, respostas autonómicas como o aumento da frequência cardíaca, ou a libertação de cortisol quando há perceção de ameaça. É ela que determina se uma memória deve ser marcada com urgência emocional ou guardada com leveza.

Depois, entra em cena o córtex pré-frontal ventromedial (vmPFC), localizado na parte inferior e medial do lobo frontal. Esta região integra as memórias episódicas e emocionais, pondera os contextos sociais e regula os impulsos. Funciona como um mediador entre o que sentimos, o que recordamos e o que é conveniente fazer. É ele que transforma esse fluxo de informação bruta num julgamento ponderado, adaptando o comportamento à situação presente.

Por isso, se o hipocampo te diz onde estiveste, e a amígdala como te sentiste lá, é o vmPFC que decide se deves voltar, ou não.

No fim de contas, a consciência não é uma torre de marfim isolada da emoção, nem um tribunal imparcial onde se julgam as opções em silêncio. É mais parecida com um baile — um espaço vivo e íntimo onde razão e emoção dançam ao compasso do córtex pré-frontal ventromedial (vmPFC). Este, como um maestro sensível ou um DJ atento, equilibra os sons do corpo e da mente: abranda os impulsos vindos da amígdala, resgata memórias armazenadas no hipocampo, e articula tudo isto numa narrativa que permita tomar decisões com a temperatura certa: nem geladas de mais, nem cegas de entusiasmo.

É através desta harmonia entre sistemas que os marcadores somáticos entram em cena. São como notas musicais escritas pelo corpo ao longo da vida, sinais que antecipam perigo ou benefício, mesmo antes do pensamento consciente formular uma conclusão. São úteis — muitas vezes salvadores — porque permitem decisões rápidas e intuitivas, baseadas na experiência.

Mas nem sempre afinam bem. O medo pode amplificar riscos de forma desproporcional, levando à inércia ou à fuga. A excitação pode fazer soar ganhos ilusórios como certezas absolutas (passo a redundância). E os traumas — essas questões mal resolvidas da memória emocional — podem desviar-nos de caminhos seguros por associações que já não fazem sentido, mas continuam a ressoar no corpo como verdade.

Cada decisão, por mais simples que pareça, é um produto composto. Leva a marca do momento, sim, mas também a assinatura de tudo o que nos moldou: sucessos, medos, encontros, perdas. A nossa história emocional está sempre presente — às vezes em harmonia, outras em dissonância — e é ela que dá cor e densidade ao ato de escolher.

Talvez, então, o verdadeiro livre-arbítrio não esteja em decidir livremente, mas em reconhecer que decidimos com tudo o que já vivemos, e que a consciência, mais do que uma balança, é um palco de reconciliação. E isso, se não for liberdade absoluta, é pelo menos profundamente humano.

No fim, tudo parece encaixar: o hipocampo que arquiva, a amígdala que sente, o vmPFC que modera. A biologia apresenta-se com a convicção de quem já viu por dentro, de quem sabe o caminho elétrico da dúvida até à decisão. É uma história bem contada. Mas como todas as histórias bem contadas, talvez simplifique o que no fundo é incompleto.

Porque por mais que se mapeiem os circuitos, por mais que se nomeiem estruturas e funções, há sempre um intervalo — um silêncio breve — entre o impulso e a ação, entre a sensação e a escolha. E é nesse espaço, por vezes microscópico, que vive o inesperado. Aquilo que nos faz contrariar os nossos próprios marcadores. Dizer “sim” quando o corpo diz “não”. Ficar quando tudo em nós quer fugir. Ou mudar de vida, não porque a memória pede, mas porque há uma vontade que escapa a qualquer manual.

A neurociência ajuda-nos a compreender melhor quem somos, mas não nos diz quem devemos ser. Descreve mecanismos, mas não encerra significados. Não explica por que razão, por vezes, escolhemos o que nos faz sofrer, nem porque há escolhas que parecem não ter explicação nenhuma, mas mudam tudo.

Talvez o que chamamos de “livre-arbítrio” não seja a ausência de condicionamento, mas a capacidade de habitar esse intervalo com lucidez. E de aceitar que, apesar de todos os mapas neuronais, há sempre mais mundo dentro de nós do que o cérebro sozinho pode contar.

Entre o que a ciência revela e o que a consciência escolhe, o abismo — ou a ponte — és tu.


Referências Bibliográficas:
Damasio, A. R. (1994). Descartes’ Error: Emotion, Reason, and the Human Brain. Random House sciencedirect.com+8en.wikipedia.org+8pt.wikipedia.org+8.
Bechara, A., Tranel, D. & Damasio, H. (2000). Insensitivity to future consequences following vmPFC lesions. Brain, 123, 2189–2202 jneurosci.org+15pubmed.ncbi.nlm.nih.gov+15mrc-cbu.cam.ac.uk+15.
Bechara, A., & Damasio, A. R. (2005). The somatic marker hypothesis: uma teoria neural da decisão económica. Games and Economic Behavior pubmed.ncbi.nlm.nih.gov+11en.wikipedia.org+11ahandfulofleaves.files.wordpress.com+11.
Bechara, A., Damasio, H., & Damasio, A. R. (2003). Roles diferenciadas da amígdala e do córtex pré-frontal médio-ventral na tomada de decisão. Journal of Neuroscience, 19(13), 5473–5481 pt.wikipedia.org+1mrc-cbu.cam.ac.uk+1.
Dunn, B. D., Dalgleish, T. & Lawrence, A. D. (2006). Avaliação crítica da hipótese do marcador somático. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 30, 239–271 en.wikipedia.org+3en.wikipedia.org+3academia.edu+3.

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Psicólogo no CRPG-Delegação de Coimbra e de Hospitais Privados (Área Clínica / Neuropsicológica).

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