Temos que falar do impacto negativo da religião: Quando a fé causa ainda mais dor

"Um indivíduo que leve a religião a um extremo pode colocar-se a si mesmo e a quem o rodeia em perigo, e o papel da comunidade em elogiar a sua dedicação pode incentivar a recusa de tratamento ou auxílio."

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Não podemos negar o impacto que a religião tem na história da humanidade. Apesar da população atual se separar, maioritariamente, em diversas religiões monoteístas, foram essas crenças que nos guiaram antes de existirem explicações científicas para determinados fenómenos ou experiências que agora tomamos por garantidos.

Aquando duma tempestade, doença ou desastre natural, era confortável virarmo-nos para uma divindade em vez de ficarmos à mercê do destino. Essa atitude oferecia-nos uma esperança nos momentos difíceis, um apoio e uma união dentro das nossas culturas. Quando olhamos para a cultura portuguesa, percebemos que a religião católica alimentou muitas das suas tradições e festividades, sendo ainda uma razão para reunir famílias e comunidades. Faz parte do nosso calendário, e o seu impacto manifesta-se num amplo espectro, que vai desde a população não praticante – mas que guarda a fé no coração – até aos indivíduos mais devotos.

A ciência está em constante evolução e a maneira como vemos a saúde mental tem sofrido evoluções necessárias. Apesar de ainda termos um longo caminho a percorrer para compreender na totalidade este vasto assunto, têm sido feitos progressos em como melhor auxiliar populações que há séculos ou décadas atrás não teriam a mesma qualidade de vida. Nas últimas décadas tem sido dada cada vez mais atenção ao impacto do ‘stress’ e traumas na nossa saúde mental.

Nos períodos em que as nossas leis civis eram regidas pelos livros sagrados, problemas do foro psicológico ou psiquiátrico eram associados a falhas de espiritualidade ou ausência de fé. Por vezes até se depositava a culpa numa divindade com motivos prejudiciais. As curas para estes problemas, na época, tentavam buscar um equilíbrio e solução rápida: aumento das práticas religiosas ou tentativas de purgas do respetivo “demónio” (se nos referirmos às religiões ocidentais). Curas que, se não forem bem administradas, podem alimentar sintomas associados ao mal-estar ou até mesmo a transtornos psiquiátricos pré-existentes.

Um exemplo é a escrupulosidade; um medo excessivo de não ser bom o suficiente, levando a uma sensação constante de culpa e até obsessão para retificar esse estado de espírito. Uma pessoa que sinta este receio pode apoiar-se em compulsões, sejam estas físicas ou mentais, de modo a corrigir ou eliminar esta culpa. Estas compulsões incluem um conjunto de atitudes, desde rever todas as suas interações em busca de sinais de não ser uma pessoa boa ou pura, até rituais que prejudicam a sua saúde física ou mental, como a reza excessiva e recusar dormir ou alimentar-se como castigo. Em casos extremos, isto pode afetar de forma negativa e disfuncional não só a vida destes indivíduos, como também a de quem vive e coexiste com eles. Não vivemos numa bolha, e os nossos comportamentos têm efeitos colaterais com as mais diversas consequências.

Quando os familiares normalizam estes comportamentos e não os impedem de ser praticados, os indivíduos acabarão por chegar a um ponto em que não conseguirão controlar as suas obsessões, principalmente nos casos em que existe uma predisposição para psicose ou comportamentos autodestrutivos. Poderão então colocar em risco a segurança desta pessoa ou das que a rodeiam. Caso o sujeito seja um pai ou uma mãe, poderá não dedicar tanto tempo a cuidar dos seus filhos, negligenciando-os ou obrigando-os a seguir as mesmas práticas, instigando o mesmo medo do castigo eterno que os atormenta. Podem isolar estas crianças e adolescentes, incitando neles a vergonha que os afasta de pedir ajuda ou a falar das suas dificuldades, especialmente nos casos em que estes familiares podem lidar com problemas psiquiátricos.

Só recentemente é que tem sido dada uma atenção especial aos filhos de pais com doença mental, e como esta pode levar ao isolamento social, ao medo e a traumas únicos. Quando a doença mental anda de mão em mão com a religiosidade extrema, como pode ocorrer em pessoas com POC (perturbação obsessiva e compulsiva) ou transtornos psicóticos, estamos a falar de uma combinação perigosa e tabu na nossa sociedade. Quando consideramos o contexto sociocultural português, no qual a religião ainda tem um pulso firme, este assunto é impedido de ser discutido com justificações de que “não é verdade”, “é falta de fé” ou mesmo acusando-o de ser “discurso de ódio”, o que leva à isolação das pessoas que vivem este sofrimento.

Apenas escrever uma opinião destas pode incitar alguns comentários, mas é importante abrirmos horizontes não só para aceitarmos outras ideias, como também aceitarmos outras perspetivas, sejam elas positivas ou negativas. Estes casos que referi acima existem, não são inventados ou histórias de ficção. São histórias de pessoas que se afogam no isolamento e dor, perdendo a conexão com uma sociedade que jura ser compreensiva e cheia de amor.

Estes pensamentos e ideais morais são, em alguns casos, entraves à busca de ajuda, e não estão limitados a perturbações do foro psiquiátrico, podem ser também algo comum no tratamento de condições físicas. Acreditar que estas entidades e hábitos são as únicas curas fundamentais leva a uma desacreditação nos diagnósticos clínicos, recusa de tratamentos e medicações, o que apenas causará a agravação destas condições. Estas crenças afetam pessoas de forma diferente; há indivíduos que veem a sua condição como um sinal que “Deus oferece aos seus melhores guerreiros as suas lutas mais difíceis”, e há indivíduos que acreditam estar a passar por um castigo ou lição das ações do seu passado. Quero salientar que o problema aqui não são estas crenças, mas sim as atitudes que elas causam.

Isto não é exclusivo de nenhuma religião ou espiritualidade e, apesar de algumas destas linhas de pensamento e atitude de mártir serem um exemplo a seguir para muitos praticantes, em nada devia o sofrimento mental e físico ser glamorizado. Muito menos devia o abuso que advém do mesmo – seja para com eles ou para com terceiros – ser justificado com uma pintura brilhante de “só quero o melhor para ti” ou “se acreditasses, todos os teus problemas iriam desaparecer”. Um indivíduo que leve a religião a um extremo pode colocar-se a si mesmo e a quem o rodeia em perigo, e o papel da comunidade em elogiar a sua dedicação pode incentivar a recusa de tratamento ou auxílio.

Para muitos que passam por problemas, sejam eles de saúde, familiares, financeiros entre outros, este sentido de comunidade e conforto na fé pode ser algo positivo. Não podemos negar a força que essas crenças oferecem! Podem dar-lhes um propósito, uma esperança e uma saída de algo que era demasiado assustador enfrentar por si mesmos. Mas quando os problemas dessas pessoas são mais complexos e requerem uma ajuda diferente, a ideologia de que é apenas uma falta de fé pode ser mais negativa do que quem a sugere possa pensar.

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Diana Freitas, nasceu em 1994, licenciada em Design pela Universidade da Madeira. Tem um interesse pela psicologia e comportamento humano, e a necessidade de pôr os seus pensamentos em palavras.

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