Existe uma cultura de pedofilia em Portugal?

“A mim parece-me que, aos olhos de alguns homens, apenas somos atraentes enquanto somos também ingénuas. Porque, quando o conhecimento e a sabedoria nos trazem o poder de dizer que não, perdemos o encanto.”

Tempo de leitura: 6 minutos

Gostava de vos dizer que este título é supersensacionalista, mas, infelizmente, acredito que não, e passo a explicar o porquê. Há uns tempos dei por mim a pensar: “já não me lembro da última vez que me buzinaram ou mandaram um piropo na rua”. A primeira explicação que me veio à cabeça foi: “ah, bom sinal, é da mudança dos tempos”. Comentei, inocentemente, este pensamento com algumas mulheres à minha volta (mãe, irmã, amigas). E percebi que afinal eu não era a única que sentia isto. Na verdade, era uma experiência universal e comum a várias gerações. A explicação inicial, de que esta mudança de comportamento dos homens era um sinal de maior consciência e sensibilidade, caiu por terra com esta última constatação.

Pensei: “qual é então o elemento comum a estes vários testemunhos?”. E cheguei a uma conclusão assustadora: éramos todas miúdas mais novas, bem mais novas. As principais vítimas deste tipo de assédio gratuito na rua não são as mulheres, são as meninas.

Constatei que, de facto, a explicação era o tempo, mas não o deles, o nosso. Comecei a pensar no porquê deste padrão tão perverso e, infelizmente, tão comum. Parece que deve ser muito mais engraçado intimidar uma miúda nova: é menos provável que responda, que reaja; a probabilidade de ficar visivelmente desconfortável é maior. E esse sentimento de impunidade da parte delas dá-lhes a eles uma sensação de poder e controlo. Espero que se sintam tão enojados e preocupados com este seguimento de ideias quanto eu. Admito que o raciocínio possa ter inúmeras falhas, e que nem sempre será assim, mas tenho dificuldade em ver as coisas de outra forma, mais positiva.

Acredito que este meu argumento seja apoiado por algo que também vemos muito frequentemente e que está, infelizmente, completamente normalizado na nossa sociedade: relacionamentos entre raparigas de 17 anos e homens de 22, ou entre miúdas de 20 e homens de 30. Para existir uma relação amorosa saudável entre duas pessoas tem de haver equilíbrio de poder, respeito, responsabilidade afetiva de ambos os lados, consentimento. Ora, parece-me difícil que uma relação desta natureza tenha todos esses ingredientes. Normalmente, justificamos esta diferença de idades dizendo que as raparigas se desenvolvem ou amadurecem mais depressa do que os rapazes (o que, já agora, parece-me um grande atestado de incompetência aos nossos rapazes). No entanto, eu questiono se isto é mesmo verdade.

As mulheres desenvolvem-se naturalmente mais rapidamente ou são obrigadas a crescer? Os rapazes são mais imaturos ou estamos a ser negligentes na sua educação e desenvolvimento enquanto pessoas e cidadãos? Acredito que as segundas opções serão as mais corretas. Será que os homens pequenos preferem raparigas mais novas porque não sabem lidar com mulheres fortes e independentes? Porque o empoderamento delas os faz sentir impotentes? Porque gostam de se sentir no controlo, e uma miúda é mais fácil de manipular? Será por isso que buzinam a raparigas na rua, mas cara a cara com uma mulher ficam calados? Será por isso que só conseguem engatar miúdas, porque as mulheres maduras já não se deixam enganar tão facilmente?

Há quem argumente que tudo isto não é assim tão profundo e que, na verdade, o que está em causa é mesmo uma questão estética ou de gosto, porque a juventude é, geralmente, mais apelativa e atraente. Ora, tenho alguma dificuldade em imaginar como é que o corpo de uma miúda de 12 anos, ainda em desenvolvimento, poderia ser de alguma forma mais sensual ou provocatório do que o de uma mulher com 25 anos (para levar um qualquer homem a impulsivamente lhe buzinar na rua ao passar ou mandar um piropo). Parece-me claramente que a questão não está aí. Mas mesmo que até estivesse: isso não seria muito estranho? Que um corpo ainda na puberdade fosse de alguma forma mais apelativo e atraente? É que, se assim for, então parece-me mesmo que vivemos numa cultura de pedofilia.

Há muitos que defendem que uma miúda nova, às vezes ainda criança, tem de se vestir de uma forma modesta ou conservadora (seja lá o que raio isso for) para não provocar os homens, para não se meter a jeito. Aqui está um claro exemplo onde nos obrigam a crescer demasiado depressa. Desde muito cedo aprendemos que o nosso corpo e o modo como o expomos podem ser perigosos para nós. Enquanto isso, eles são completamente desresponsabilizados pelos seus próprios comportamentos; “boys will be boys“.

Em sentido oposto, o corpo envelhecido é completamente demonizado, visto como algo feio e que devemos esconder, desta vez porque ninguém o quer ver. Porquê? Qual é afinal o critério de diferenciação que está aqui em causa? Será uma questão de idadismo?

A mim parece-me que, aos olhos de alguns homens, apenas somos atraentes enquanto somos também ingénuas. Porque, quando o conhecimento e a sabedoria nos trazem o poder de dizer que não, perdemos o encanto. Ainda bem que existem cada vez menos mulheres ingénuas e encantadas e que os homens têm agora o desafio de aprender a lidar com isso. A alternativa seria uma verdadeira epidemia de solidão da parte deles, ou pelo menos dos homens pequeninos e predadores. E honestamente, desses eu não tenho muita pena que acabem sozinhos. Tenho mais receio pelas mulheres que se deixam envolver em relações onde precisam de se diminuir para não magoar o ego masculino.

Não podia terminar este texto sem fazer um último apelo: eduquem os vossos filhos, os rapazes à vossa volta, para o respeito e a empatia. A solução não pode ser a proteção das nossas raparigas à custa da sua liberdade, da sua limitação, do controlo do que vestem, onde vão, o que fazem, como se comportam, com quem e como falam. É preciso fazer mais e melhor, porque a realidade atual ainda não é justa e igualitária, mas podemos e devemos continuar a caminhar para lá.

Se desse lado quem está a ler é um homem decente, este texto não é sobre ti, mas é também para ti. Por favor, não ignores os comportamentos dos teus pares que, no fundo, sabes não serem corretos. Dá o exemplo, denuncia, sensibiliza, junta-te à luta. Porque este não é um problema só das mulheres, é um problema de todos, e tu podes e deves ser parte da solução.

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Sou Psicóloga Júnior na “Casa Maior”, uma residência sénior no Porto. Fiz o meu percurso académico na universidade de Aveiro, sendo mestre em Psicologia da Saúde e Neuropsicologia. Fiz parte da primeira geração de estudantes embaixadores OPP e sou também recrutadora na “Reconhecer o Padrão”.

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