Bullying: a violência socialmente aceite

"Porque o bullying não começa com o primeiro soco ou empurrão. O bullying começa quando o futuro agressor escolhe o seu alvo."

Tempo de leitura: 12 minutos

Mais uma vítima de bullying fez título de notícia em terreno nacional. Quando estes casos surgem são sempre situações de choque e de conversas. Neste caso foi uma criança com 12 anos na Ilha da Madeira que, não conseguindo lidar com as consequências destes eventos, pôs termo à vida. É um título no mínimo chocante e, por mais atenção que esteja a ser dada ao tema do bullying, continuo a crer que a discussão não segue o caminho ideal. Estas notícias trazem sem dúvida alguma conversas pertinentes sobre assuntos que afligem os nossos jovens, mas essas conversas apenas duram semanas ou meses no máximo… até ao próximo caso surgir, com um título igualmente chocante. No espaço que decorre entre estas notícias, a situação continua a acontecer mascarada por “crianças são cruéis” e outras frases-feitas cujo objetivo é apenas um: calar as queixas de quem sofre diariamente.

O argumento central neste assunto é, na minha opinião, uma dicotomia de vítima vs. agressor; como se estes fossem os únicos fatores na equação. Na realidade, este problema requer duas conversas importantes, mas separadas, cada uma com a sua perspetiva e organização de eventos: sociedade vs. vítima e sociedade vs. agressor.

Quando falamos e damos muita atenção ao argumento de vítima vs. agressor numa tentativa de encontrar soluções mágicas, o discurso para de se focar na vítima ─ como esta se sente e como ela irá lidar com as consequências e repercussões destas experiências traumáticas ─ e passa a focar-se no que faz um agressor ser agressor. Espalham-se teorias de que este é também vítima de bullying ou de violência no contexto doméstico, ou que é um possível membro de grupos minoritários ou classes socioeconomicamente desfavorecidas. E tudo acaba numa teoria de “como podemos resolver o problema” ao oferecer mais apoios a estes bullies, na esperança que eles mudem de atitude da noite para o dia.

Em vez de darmos apoio necessário a quem sofre o isolamento social, a violência física e emocional, entre outras, estamos a ensinar-lhes que é mais importante ter empatia por quem lhes está a causar mal sem nunca sofrer as pressupostas consequências pelo crime de aterrorizar uma outra pessoa, do que valorizar o seu próprio bem-estar. E, ao agressor, estamos a dar, infelizmente, uma luz verde para continuar as suas ações, desde que fora do radar do exterior. O bully não sofre expulsão ou castigo além da ocasional reprimenda, mas já a vítima é aconselhada a calar-se.

Segundo a página governamental do SNS24, “bullying é uma forma de violência que corresponde a comportamentos agressivos, intencionais e repetidos, exercidos por uma criança, jovem, ou grupo – bully ou bullies – contra outra que não tem possibilidade de se defender”. Quando este assunto é discutido nos media é passada uma imagem da vítima como alguém indefeso, tímido, fraco a nível físico, “nerd”, e dada a impressão que se fosse mais extrovertido ou tivesse outros interesses, não teria o mesmo futuro. Lê-se relatos de pessoas que começam a sua história com “eu sofri bullying, mas impus-me e parou”, ou “mas bati de volta” ou “mas falei com um adulto responsável” e como essas ações puseram um final feliz naquela história. Muitas até demonstram como desenvolveram uma amizade com o pressuposto bully.

Detesto rebentar a vossa bolha ou ser a advogada do diabo neste aspeto, mas isto não é o resultado comum. Esse é o resultado desejado, porém irrealista. Isso são as histórias das pessoas que nunca, felizmente, terão as repercussões de vida a nível físico, psicológico e social como alguém que fez tudo como os livros e guias ditam… e apenas recebeu dor a triplicar. Porque disseram “não”, foram assertivos, defenderam-se, bateram de volta e fizeram queixa a todos os adultos disponíveis e cuja responsabilidade é defendê-los… E, no final, nada ajudou. Porque os adultos encarregues de cuidar da criança ou adolescente assumiram que ele ou ela merecia (ou decidiram colocar o bem-estar do bully em primeiro lugar) devido a ideologias de que isto “irá deixá-los mais fortes” ou “irá ensinar-lhes uma lição”. Em muitos casos, os professores incitam os bullies, dando-lhes liberdade para torturarem (sim, irei usar esta palavra porque é a única que chega perto o suficiente da realidade) o colega ou colegas. O ‘bullying’ não para com uma reprimenda de um professor. O bullying apenas para quando a vítima sai, morre ou quando os bullies simplesmente se fartam e mudam de alvo. Não está na mão da vítima, nem está na mão dos seus pais, nem só nas mãos dos professores ou auxiliares. Está na mão do agressor e de quem o educa, porque os bullies não aprenderam sozinhos a criticar quem é diferente.

Nem todos os casos são publicados, óbvio. A maioria passa despercebida, sendo até incentivada pelo corpo docente e alunos. Normalmente estas publicações acontecem num dos seguintes cenários: ou o agressor ou testemunhas filmaram os abusos e humilhações, ou os pais ficaram transtornados e filmaram o desabafo do filho no meio do seu desespero, ou a vítima não aguentou mais e pôs termo à vida. Estes conteúdos depois levam a republicação pelo choque e dor que nos causa. Mas não iria estar a mentir se dissesse que algumas das pessoas que publicamente mostram esse descontentamento e são capazes de dizer-se contra o bullying seriam capazes de demonstrar ações depreciativas para com colegas ou conhecidos. Porque, contrariamente ao que se possa pensar, o bullying não acaba quando se termina o 9.º ou 12.º ano, nem acaba quando se passa de adolescente a adulto. Muitas das pessoas que sofreram estas experiências traumáticas e sobreviveram passam a adultos com sérias feridas emocionais e que serão infelizes vítimas de isolamento social noutros contextos. Porque terão para sempre aquele alvo invisível para quem tem o radar de detetar pessoas minimamente diferentes. Muitas dessas ações são socialmente aceites. Ninguém quer acreditar que pequenas coisas como não incluir a pessoa em planos, mandar comentários negativos na forma de indiretas ou até mesmo olhares de descontentamento podem ter esse impacto… Mas as crianças imitam estes comportamentos. É aqui que o bullying começa. Não quando a violência acontece, mas quando essa pequena semente já foi plantada e apenas têm de a regar.

Vamos imaginar um cenário, em que a pessoa/criança A muitas vezes sofre pequenas indiretas por parte de colegas, comentários com uma ponta de ataque pessoal. É o alvo de piadas e pequenas humilhações, nada muito grave que chame a atenção, mas nada muito ligeiro que passe despercebido a outros participantes. Talvez A nem se aperceba, ao início, do que está a acontecer… Talvez esses colegas pareçam amigos ou defendam as suas ações com “é só uma piada”. Para A, eles não estão a ser agressores ou abusivos… mas essas ações repetitivas apenas demonstram para quem está ao redor que aquela pessoa não tem suporte. Que aquela pessoa pode ser um alvo contínuo e quem a atacar terá apoiantes. É assim que estas histórias começam, com os bullies analisando cuidadosamente cada possível alvo, escolhendo a dedo quem não irá levantar suspeitas.

Infelizmente, quando analisamos o problema do bullying, apenas o reconhecemos quando se torna em violência constante, no momento em que a vítima se apercebe que aquela situação não é correta e decide buscar ajuda. Não nos focamos nas condições que criam o cenário para a vítima perfeita. A vítima perfeita é aquela que, por algum motivo alheio a ela, não é aceite na sociedade. Porque o bullying não começa com o primeiro soco ou empurrão. O bullying começa quando o futuro agressor escolhe o seu alvo.

Não iremos resolver este problema até vermos o bullying pelo que ele realmente é, e não pelo que queremos que seja. Bullying é violência. Não é um mau hábito que resolvemos com abraços e ações de solidariedade, nem com bloqueios às redes sociais ou documentários com músicas tristes em som de fundo. O bullying começa em casa, com os pais que tratam quem seja diferente com desprezo, ensinando a criança que pode criticar e julgar. Começa com pais que acreditam que a violência é a disciplina ideal, ensinando a criança a falar com agressão física em vez de desenvolver a sua comunicação. Começa com a sociedade que justifica rapazes agredirem raparigas como sinal de amor, ou o caso inverso como fraqueza. Começa com a sociedade a igualar o bullying a consequências de mau comportamento, com a frase de “temos de normalizar o bullying”, desvalorizando assim uma situação que já é assunto de piada. E, mais que tudo, começa quando perdemos a empatia pelos outros e nos esquecemos de a nutrir.

Um dos conselhos que vejo mais oferecerem nestas situações é “bate de volta e talvez parem”. Certo. E o que se faz quando a criança depois vai ter ao conselho diretivo, culpada de atacar os colegas? O que é que se faz quando essa criança tem um grupo de cinco ou seis colegas a darem-lhe socos e pontapés? O que se faz com quem filma e deixa a situação desenrolar? O que é que se faz quando lhe fazem uma espera, fora da escola, e o conselho diretivo não pode atuar? Ou quando os pais estão de mãos atadas porque a escola se recusa a castigar o agressor? O que é que se faz quando a criança recebe ameaças de morte ou violência? O que é que se faz quando a encontram num corredor vazio e tocam nas suas partes íntimas, assediando-a sexualmente? O que é que se faz quando o conselho diretivo ou polícia se recusam a formalizar uma queixa por receio da reação dos pais dos agressores?

As crianças que são agressoras, em muitos destes casos, estão protegidas. Temos de parar com a narrativa de que os agressores apenas são de famílias desfavorecidas, em muitos casos é o contrário: pertencem às classes socioeconômicas médias e altas, e sabem que estarão impunes a qualquer tipo de castigo ou consequência. É a falta de regras que os leva a atacarem colegas, pela sensação de controlo e popularidade que oferece. E a vítima, que neste momento já ganhou a fama com os colegas, outros alunos e conhecidos, estará para sempre marcada com um alvo nas costas em vermelho escarlate. Mesmo que mude de escola, mesmo que bloqueie o acesso dessas pessoas às suas redes e número telefónico, nada irá retirar o dano já causado.

Não podemos resolver o problema do bullying sem primeiro impedir que ele se continue a espalhar. Estamos a falar de crianças que desenvolvem traumas, passam anos com pesadelos e ataques de pânico. Crianças que poderão requerer acompanhamento psicológico onde profissionais menos experientes podem até minimizar os seus impactos. “Mas já não estás nessa escola”, “mas isso foi no passado”, “tens de fazer novas amizades”, dizem, ignorando completamente o dano psicológico que aquele terror causou. Isto não vem da boca de alguém que leu ou estudou o assunto. Isto vem da experiência de alguém que viveu este pesadelo na pele. Para mim, o bullying terminou no 9.º ano, mas os seus efeitos negativos perduram até os meus 30 anos. Não é fraqueza, é learned helpssness. Aqueles anos ensinaram-me, numa tenra idade, que eu mereço o meu sofrimento e que nem quem tem a responsabilidade legal de me defender o irá fazer. Porém, esta podia tanto ser a minha história como a de tantas outras pessoas que um dia sofreram a mesma dor e hoje ainda caminham todos os dias com essas cicatrizes escondidas, bem como a de quem, infelizmente, sucumbiu às feridas.

Até tratarmos o bullying como a violência que é, não menosprezando a dor e tortura emocional que causa, casos como estes continuarão a acontecer. Neste momento, os meus pensamentos estão com a família e com quem esteja a passar pelo mesmo desespero. Existe ajuda e existe esperança, e com o passar dos anos, vão surgindo mais apoios e medidas. No entanto, isto é um problema social e, como todos os problemas sociais, parte da solução passa pelas nossas atitudes e vozes serem ouvidas, bem como ouvirmos as vozes dos outros. Temos de parar com a narrativa de que o bullying fica no recreio da escola. O bullying e os seus efeitos acompanham-nos para o resto da vida. Não é apenas uma questão de ser chamado nomes ou dos colegas serem maus para si, é violência e abuso.

Partilhe este artigo:

Diana Freitas, nasceu em 1994, licenciada em Design pela Universidade da Madeira. Tem um interesse pela psicologia e comportamento humano, e a necessidade de pôr os seus pensamentos em palavras.

Contraponha!

Discordou de algo neste artigo ou deseja acrescentar algo a esta opinião? Leia o nosso Estatuto Editorial e envie-nos o seu artigo de opinião.