Nas últimas semanas, assistimos a mais um episódio de violência entre a Índia e o Paquistão. Um atentado terrorista na região da Caxemira provocou 26 mortos. A Índia acusou grupos extremistas protegidos por Islamabad. Dias depois, lançou ataques aéreos em território paquistanês, alegando autodefesa. Seguiu-se a retaliação: troca de fogo, bombardeamentos, aldeias atingidas, civis mortos. E, como sempre, entre as vítimas, havia crianças.
Este conflito não é novo, mas o facto de nos parecer familiar deveria ser um sinal de alarme. Estamos a assistir, cada vez com mais indiferença, à normalização da guerra. Caxemira, Gaza, Ucrânia, Sudão: diferentes geografias, a mesma lógica. A violência deixa de ser exceção e passa a ser tratada como um estado natural das coisas, noticiada com a frieza de um acontecimento técnico. Bombardeou-se. Reagiu-se. Contaram-se os mortos. Passou-se ao tema seguinte.
A passividade da comunidade internacional é reveladora. A ONU pede moderação. Os Estados Unidos dizem-se preocupados. A União Europeia observa. As grandes potências – aquelas que dominam os fóruns multilaterais e que falam de direitos humanos quando lhes convém – limitam-se a emitir comunicados sem consequência. Onde estão os mecanismos de prevenção? Onde está a diplomacia ativa? Porque é que uns conflitos mobilizam meios e sanções enquanto outros são ignorados? Haverá vidas que valem mais do que outras?
Permitir que duas potências nucleares entrem num ciclo de provocação e resposta armada sem qualquer esforço visível de mediação eficaz envia uma mensagem perigosa: a guerra é aceitável desde que se mantenha longe o suficiente. Essa aceitação silenciosa é um erro trágico. Não há normalidade possível numa região onde civis vivem sob ameaça constante, onde se enterram filhos em valas comuns, onde a vida depende do capricho político e militar dos que decidem.
A verdade é que a guerra se tornou um instrumento político. Muitos governos já não procuram evitá-la. Pelo contrário, usam-na para alimentar o medo, tirar a atenção da crise interna e fortalecer discursos de força. E, quando o medo se instala, o espaço para a razão e para o diálogo desaparece. A linguagem da segurança substitui a da justiça. A urgência das armas sobrepõe-se à urgência da paz.
Neste contexto, a neutralidade é uma forma de conivência. Dizer que ambos os lados têm culpa, sem olhar para as assimetrias, para os massacres, para a história concreta de cada conflito, é perpetuar a ideia de que tudo é relativo. Mas não é. A morte de civis não é um dano colateral inevitável. É uma escolha política. É sempre o resultado de decisões tomadas ou evitadas.
Quantas guerras precisamos até perceber que o problema não está apenas nas armas, mas na aceitação do seu uso como método de governação? Quantos confrontos armados serão necessários até a comunidade internacional abandonar a sua posição cómoda e começar a agir com firmeza onde é mais difícil e menos lucrativo intervir?
A escalada entre a Índia e o Paquistão não pode ser tratada como apenas mais um capítulo de uma disputa antiga. É um sintoma de um mundo que tolera demasiado. Um mundo onde os apelos à paz são rotineiros e as ações concretas escassas. Um mundo que se diz civilizado, mas que continua a permitir que populações inteiras sejam reduzidas a números nas estatísticas de guerra.
Defender a paz, nestas circunstâncias, não é um gesto passivo. É um dever político. Exige denúncia, exige clareza e exige a recusa frontal da lógica da violência como norma. Enquanto essa recusa não for firme, continuaremos a assistir à repetição do intolerável.
Referências
CNN Portugal. https://cnnportugal.iol.pt/india-e-paquistao/india/um-massacre-fez-escalar-as-tensoes-entre-duas-potencias-india-vs-paquistao-o-que-se-sabe/20250424/680a4ecad34ef72ee4452b09
Público https://www.publico.pt/2025/05/06/mundo/noticia/india-lanca-ataques-aereos-paquistao-2132176
Rádio Renascença. https://rr.pt/noticia/mundo/2025/05/07/india-e-paquistao-a-beira-de-uma-guerra-em-larga-escala/424413/