A Democracia Está Cumprida? – Reflexão, 50 anos depois, sobre os desafios atuais da democracia portuguesa

"Os desafios atuais exigem uma reflexão séria e um compromisso coletivo para que a liberdade, a justiça e a participação dos cidadãos continuem a evoluir.

Tempo de leitura: 6 minutos

O 25 de abril de 1974 trouxe consigo a promessa de um país livre, democrático e mais justo. 

A ditadura que se estendeu durante quase 50 anos deu lugar a uma sociedade onde os cidadãos passaram a ter a possibilidade de escolher os seus governantes, expressar-se livremente e a participar ativamente na construção do futuro do país. Mas agora, passados 50 anos desde a revolução, podemos dizer que a democracia portuguesa está totalmente cumprida?

Conquistas Inquestionáveis

Desde a revolução, Portugal consolidou um regime democrático estável que conhecemos atualmente, floresceu para o mundo e aderiu à União Europeia, observando-se melhorias significativas na qualidade de vida dos cidadãos. A liberdade de imprensa, a realização de eleições livres e a existência de uma sociedade civil ativa são sinais claros de que os ideais de abril continuam vivos.

Além disso, houve avanços sociais importantes, como a igualdade de género e a afirmação da mulher, o reconhecimento dos direitos das minorias e o fortalecimento do Estado Social, através do acesso universal à saúde e à educação.

Desafios Atuais da Democracia Portuguesa

No entanto, a democracia não é um processo estático e Portugal enfrenta desafios que colocam à prova os princípios conquistados em 1974:

  1. Abstenção, Desinformação e Desinteresse Político
    • As taxas de abstenção em eleições têm sido alarmantes, indicando que muitos cidadãos se sentem distantes da política ou desacreditados no sistema. A título de mero exemplo, nas eleições legislativas de 2024, tivemos apenas 59,84% de votantes, o que significa uma abstenção de 40,16%1
    • Por outro lado, continua a ser uma miragem em Portugal a literacia política nas camadas mais jovens. Na verdade, os jovens apenas podem almejar ter esse contacto através de juventudes partidárias cuja intenção não é a política em si, mas a sua própria política – isto é, do partido. Por tal motivo, cada vez mais tarde e de forma tendencialmente enviesada participam na vida política.
    • Além disso, a falta de representatividade e de renovação política pode afastar estes  jovens e até outras camadas da população do debate democrático, o qual se tem tornado cada vez mais populista e centrado nos holofotes do que propriamente construtivo e empenhado em olhar para o futuro. Também por isto se vê comprometida a esperança de muitos portugueses na política do nosso país, como é reflexo a própria abstenção. 
  1. Corrupção e Desconfiança nas Instituições
    • Cada vez mais surgem a público casos de corrupção envolvendo figuras políticas e públicas que fragilizam a confiança dos cidadãos na democracia e na justiça. Os referidos casos não só têm sido revelados com maior frequência e alvo de maior escrutínio, como também se afiguram de maior gravidade. 
    • Aliado a isto, a perceção dos cidadãos de que a justiça não atua de forma eficaz cria frustração e descontentamento. Muitas vezes ouvimos a expressão “o crime compensa”, a qual, se enraizada culturalmente, poderá acarretar desafios ainda maiores para as instituições. 
  1. Desigualdades Sociais e Económicas
    • Apesar do progresso indiscutível, a verdade é que muitas famílias ainda enfrentam dificuldades económicas, com salários baixos e um custo de vida elevado.
    • Em Portugal, a realização do direito à habitação tem-se tornado cada vez mais uma miragem – em especial para os jovens, que encontram obstáculos financeiros para aceder à sua primeira habitação, com rendas incomportáveis ou valores de aquisição irrealistas.
    • Não obstante o salário mínimo ser atualizado todos os anos (por forma a garantir o “mínimo de sobrevivência”), o salário médio não tem beneficiado, ao longo dos anos, da mesma atualização. Com efeito, vamo-nos deparando com o aproximar das duas realidades, verificando-se pouca diferenciação dos trabalhadores, ao nível da sua qualificação/aptidão na remuneração. Devido a essa notória e generalizada precariedade salarial  há cada vez mais portugueses no limite da sobrevivência.
    • O acesso à saúde, à educação e a outros serviços básicos, embora cada vez mais universais, continua a não ser suficientemente eficaz para responder às necessidades dos portugueses, com listas de espera infindáveis ou falta de celeridade no tratamento dos assuntos. 
  1. Crescimento de Movimentos Populistas e Extremistas
    • O descontentamento e a crise de confiança nas instituições têm levado ao crescimento de discursos populistas que exploram o medo e a insatisfação. Este tipo de movimentos tem tentado, de forma mais atual e ludibriosa aplicar técnicas de desinformação tal como existia antes do 25 de abril de 1974, com a censura da imprensa – pois só assim os regimes autoritários de extrema direita podem sobreviver. 
    • O intuito deste tipo de movimentos é chamar à atenção pelo choque, em nada procurando educar, capacitar e civilizar. 
    • E, deste modo, vem-se verificando a polarização política, a qual pode ameaçar a convivência democrática e a busca por soluções equilibradas e justas para que possamos viver em comunidade (que somos). 
  1. O Papel da Comunicação Social e das Redes Sociais
    • Nesta sequência, a desinformação e as fake news que proliferam rapidamente pelos meios de comunicação social e pelas redes sociais são desafios que podem manipular a opinião pública e distorcer o debate político.
    • Cada vez mais os debates, as notícias e as comunicações se tornam pessoais e de ataque direto, ao invés de centrados nas necessidades do país. 

Podemos Fortalecer a Democracia?

Se a democracia é um projeto em construção, há caminhos que podem ser seguidos para torná-la mais sólida e participativa.

Desta vez, não avançarei soluções – tal como avancei problemas – precisamente porque a democracia é definida como “forma de governo em que o povo exerce a soberania, directa ou indirectamente2; o poder do Estado é investido no povo ou na população em geral” e, por isso, a solução está em todos e em cada um de nós. 

A democracia portuguesa cumpriu muito do que foi prometido há cerca de 50 anos, mas está longe de ser um processo concluído. Os desafios atuais exigem uma reflexão séria e um compromisso coletivo para que a liberdade, a justiça e a participação dos cidadãos continuem a evoluir. Afinal, a democracia não é apenas um direito conquistado – é uma responsabilidade a ser exercida todos os dias.


Referências

  1.  Cfr. Resultados Globais das Eleições Legislativas de 2024 disponíveis em https://www.eleicoes.mai.gov.pt/legislativas2024/resultados/globais 
    ↩︎
  2.  “democracia”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/democracia 
    ↩︎

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Escrever é, para mim, falar simultaneamente sozinha e para uma multidão. Por defeito apaixonada por ambas, juntá-las é ser eu mesma.

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