O movimento estudantil como fonte democrática

"A falta de unidade entre as lutas académicas atuais é evidente, cada vez mais as reivindicações estudantis sofrem de uma apropriação político-partidária que quebra a união dos estudantes, levando assim a uma fragmentação e enfraquecimento deste movimento."

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A importância do movimento académico para a luta pela democratização da sociedade portuguesa é inegável.  Com o início da década de 60, o Ensino Superior português entrou numa fase de democratização antirregime, marcando uma rutura clara com a visão elitista académica. A realidade estudantil durante o Estado Novo era claramente diferente da que vivemos hoje. As dificuldades sociais e económicas que atiravam a maioria da população para o analfabetismo faziam com que o acesso ao Ensino Superior fosse limitado a um estrato da população claramente mais estável e culto1. Estas condições faziam com que as academias portuguesas fossem vistas como um embrião do futuro do Regime, estando impregnadas de professores, ideais e movimentos salazaristas.  

No entanto, a partir de cerca de 1962 esta posição alterou-se profundamente. Com a conquista da Associação Académica de Coimbra por um grupo de estudantes democratas houve um reforço da oposição democrática, desenvolvendo-se uma corrente de opinião estudantil aberta. Este facto, associado ao acesso a um forte tecido cultural, levou ao desenvolvimento de uma sensibilidade contracultural, criando as bases para grandes campanhas democráticas universitárias, culminando com a manifestação de 24 de março de 1962, um dos maiores marcos do movimento estudantil2. Foi neste Dia do Estudante que se denotou fortemente a oposição ao regime no seio académico, quando com um grande fervor democrático os estudantes se uniram celebrando este dia, mesmo contra a proibição da mesma, levando à invasão da Cidade Universitária pela polícia de choque. Neste âmbito, foi decretado luto académico e uma grave geral seguida maciçamente por várias academias. Com o reforço da violência e da pressão policial após este acontecimento, o movimento estudantil estagnou um pouco. Os anos seguintes foram marcados pelo assalto a sedes de associações académicas e pela prisão de alguns líderes estudantis pela PIDE. 

Cerca de 7 anos após a cise académica de 1962, deu-se um reinício da politização académica coimbrã. Em abril de 1969, durante a inauguração do Edifício de Matemática da Universidade de Coimbra, o presidente da Associação Académica de Coimbra foi impedido de discursar, levando ao reinício dos protestos contra o regime e à marcação de uma greve estudantil com 85% de adesão. A radicalização do movimento estudantil tornou-se evidente, a luta deixou de ser apenas por mais direitos para os estudantes, para ser uma luta aberta contra o Regime e a Guerra Colonial, com uma crescente capacidade de organização e de mobilização inspirada no “Maio de 68”. A posição do Regime manteve-se a mesma, com a clara rutura estudantil com o ideal que tinha tornado as academias o embrião da continuidade do Estado Novo, a repressão aumentou, culminando na detenção de vários estudantes e do fecho da AAC pela polícia em fevereiro de 1971.

A realidade é que em quase todas as sociedades a alteração do status quo dependeu fortemente da organização de jovens sensíveis às causas sociais e à necessidade de mudança. O crescente acesso à cultura permitiu sempre a consciencialização individual e coletiva, funcionando assim como uma espécie de fonte revolucionária social. Hoje o contexto é completamente diferente. A sociedade portuguesa educou-se, o analfabetismo já é quase nulo, a maioria dos jovens já tem um curso superior, vivemos numa das gerações jovens mais politizada de sempre e ainda assim os jovens continuam a ter um papel de fundo na política nacional, ficando muitas vezes esquecidos nos momentos de decisão. Este ponto levanta várias questões relativas aos movimentos políticos jovens. Se temos cada vez mais jovens politizados, educados e formados qual a razão para a emigração jovem constante? Qual a razão para as crescentes dificuldades económicas que os jovens atravessam? Mas acima de tudo, qual a razão para a geração mais educada e politizada de sempre não sair à rua face a estes problemas? 

Mesmo com todas as faculdades e meios disponíveis, a nossa geração parece ter perdido o espírito de Abril que habitou longos anos no âmago estudantil português. A falta de unidade entre as lutas académicas atuais é evidente, cada vez mais as reivindicações estudantis sofrem de uma apropriação político-partidária que quebra a união dos estudantes, levando assim a uma fragmentação e enfraquecimento deste movimento. Face ao crescimento de ideias que colocam em causa a liberdade e a democracia conquistadas pelos nossos avós, parece-me evidente a necessidade de uma união jovem de valores democráticos capaz de aglomerar e consolidar a luta estudantil. É tempo de olharmos para o passado do movimento estudantil como um modelo de inspiração para as lutas de hoje.

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  1. https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/confirma-se-que-uma-em-cada-tres-portuguesas-era-analfabeta-em-1970-antes-do-25-de-abril/ ↩︎
  2. https://observador.pt/2022/03/22/estudantes-desafiaram-salazar-ha-60-anos-com-uma-licao-pela-liberdade/ ↩︎

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Simão Cera, natural de Cantanhede, nasceu a 18 de fevereiro de 2006. Está atualmente a estudar Ciência Política e Relações Internacionais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa.

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