Há 51 anos terminava, na Europa Ocidental, a mais longa ditadura do século XX. Com a Revolução dos Cravos triunfou a democracia e, com ela, emergiu também a vitória da liberdade de expressão — uma luta arduamente travada por muitos dos grandes autores do século passado. Certamente, a face mais conhecida da repressão cultural foi o caso que envolveu as Novas Cartas Portuguesas; contudo, anos antes, tantos outros autores — infelizmente ofuscados pela espessura do tempo — foram perseguidos e presos por aspirarem a um país livre.
Sobre a fachada da moralidade pública e a salvaguarda da ordem social, o regime salazarista instituiu, desde cedo, mecanismos para atenuar a «perversão da opinião pública na sua função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos»
1. Na imprensa, o lápis azul cortava previamente tudo aquilo que fosse considerado contrário à moral pública. Já na literatura, embora não existisse censura prévia formal ao que era publicado, a PIDE exercia um controlo apertado, proibindo a circulação de qualquer obra que abordasse temas como o erotismo, o feminismo, o comunismo ou que contivesse críticas ao regime.
No longo rol de autores censurados pelo regime, embora menos conhecida do que outros, Natália Correia figura entre os nomes com mais obras censuradas, acumulando, nesse melancólico pódio, um longo processo judicial. Em 1966, foi responsável por selecionar, prefaciar e anotar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, editada pela Afrodite, do amigo Fernando Ribeiro de Mello.
A Antologia incluía poemas que iam desde Martim Soares, do século XIII, passando por Camões e Fernando Pessoa, até autores contemporâneos como Maria Teresa Horta. Natália Correia afirmava que a sua intenção era, «filosoficamente, sociologicamente, culturalmente»2, exaltar o erotismo e a sátira que estavam ocultos na literatura portuguesa. A antologista — efusiva, exuberante e excessiva, como poucos na literatura portuguesa durante a longa noite do salazarismo —, encarnando uma visão poética da vida, procurava a «revolucionária recriação do mundo a partir do censurável e do proibido»3.
Produzida com o objetivo de escandalizar e como uma clara manifestação política contra a máquina repressiva do regime, a obra de Natália Correia e do editor Ribeiro de Mello cumpriu os seus propósitos: foi proibida e alguns dos seus autores — entre os quais Mário Cesariny, José Carlos Ary dos Santos, Ernesto de Melo e Castro e Luiz Pacheco — foram sujeitos a um longo processo judicial.
António Botto teve, possivelmente, a sorte de já ter falecido. Se estivesse vivo, certamente teria sido um dos réus. Natália Correia incluiu na coletânea dois poemas inéditos da sua autoria, um dos quais, até hoje, continua a suscitar grande controvérsia: «Nunca te foram ao cu,/ nem nas perninhas, aposto!/ Mas um homem como tu,/ lavadinho, todo nu, gosto!// Sem ter pentelho nenhum,/ com certeza, não desgosto,/ até gosto!/ Mas… gosto mais de fedelhos./ Vou-lhes ao cu/ dou-lhes conselhos,/ enfim… gosto!»
Perante a proibição da obra, Fernando Ribeiro de Mello fez circular uma edição pirata, ostensivamente atribuída a uma chancela brasileira. O “Brasil” estava, na verdade, algures entre as sombras das ruas lisboetas, inscrito nos becos da clandestinidade editorial. Ribeiro de Mello conhecia bem o valor do interdito: sabia que o fruto proibido é o mais apetecido. Dos três mil exemplares dessa edição oficiosa, todos se escoaram. Por debaixo dos balcões das livrarias, em gestos cúmplices e sussurrados, os volumes eram entregues aos clientes do costume, aqueles que sabiam onde bater e o que pedir. Ali respirava um país em liberdade — tímida e clandestinamente, mas ainda vivo.
Como seria de esperar, os arguidos foram acusados de abuso de liberdade de imprensa, sustentando-se que a obra era «pornográfica» e constituía um «ultraje à moral pública». As autoridades valorizaram a dimensão erótica da Antologia, em detrimento da sua intenção satírica, numa incessante caça ao palavrão que, descontextualizado, procurava apenas comprovar o atentado à moral pública. O processo judicial, à semelhança do que ainda ocorre em Portugal, foi sendo sucessivamente adiado. No meio da complexidade jurídica, foram instaurados dois inquéritos e proferidas duas acusações, em virtude de erros cometidos na fase inicial do processo.
Hoje, é certo, este caso teria gerado um intenso e persistente círculo mediático, que não se centraria apenas nas falhas do aparelho judicial, mas também no abismo temporal que separa a primeira peça processual, datada de 17 de janeiro de 1966, da última, emitida apenas a 27 de junho de 1973 — sete anos e meio depois.
À época, porém, a férrea malha da censura sufocava qualquer tentativa de manifestação pública de apoio. A imprensa amordaçada limitava-se a breves e pálidas referências ao processo. Também na sociedade o processo não provocou ondas de protesto. Não se ergueram abaixo-assinados, não se ouviram discursos inflamados, nem se registaram mobilizações solidárias. Mesmo os ecos internacionais de indignação foram, na melhor das hipóteses, ténues. Um silêncio pesado pairou sobre o caso — não apenas imposto, mas também consentido.
Na leitura da sentença, apesar de se ter reconhecido que a Antologia constituía um trabalho sério, com mérito literário e intenção crítica, o tribunal considerou comprovado o seu carácter pornográfico, obsceno e atentatório da moral pública. Todos os réus acabaram por ser condenados a penas de prisão, embora estas tenham sido substituídas por multas. A título de exemplo, Natália Correia e Fernando Ribeiro de Mello foram ambos sentenciados a 90 dias de prisão correcional, pena que foi substituída por multa à razão de 50 escudos por dia, acrescida de mais 15 dias de multa à mesma taxa.
Natália Correia não temia a censura — antes a desafiava, fazendo dela palco de subversão e instrumento político. A sua escrita transformou-se num símbolo vivo da resistência à asfixia cultural imposta pelo regime. Contudo, a censura deixava cicatrizes fundas. Não apenas amputava a liberdade de expressão, como lançava uma geração de escritores à beira do silêncio — entre a autocensura e o medo, entre o risco de escrever e o custo de resistir. Muitos calaram-se, outros escreveram nas margens, outros ainda ousaram, como Natália, enfrentar o abismo. Com a Revolução dos Cravos, em 1974, a censura literária foi finalmente abolida. Contudo, o seu espectro permanece vivo na memória histórica, visível na produção literária que sobreviveu aos anos de chumbo, onde cada palavra publicada é, ainda hoje, testemunho de um tempo em que escrever era, em si, um ato de coragem.
Com a chegada da democracia, triunfou também a liberdade de expressão — esse direito fundamental que hoje, paradoxalmente, é por muitos instrumentalizado, frequentemente desprovido de consciência histórica e de memória dos tempos sombrios do salazarismo. Em nome dessa mesma liberdade, procura-se impor uma agenda marcada pela desinformação e pela propagação do discurso de ódio, onde as redes sociais são o palco privilegiado para a banalização da mediocridade de opiniões.
Muitos interrogam-se: não será também este tipo de discurso uma expressão legítima da liberdade conquistada? Até que ponto pode — ou deve — a democracia permitir todas as múltiplas e complexas formas de expressão?
Ainda que se mantenha um debate intenso e necessário sobre os limites da liberdade num regime democrático, importa recordar que a democracia, embora imperfeita, não é ilimitada. Os direitos fundamentais não são absolutos. A nossa liberdade encontra o seu limite quando ameaça a liberdade e, sobretudo, a dignidade, do outro.
Recordemos, pois, as conquistas de abril como o resultado de uma longa e corajosa resistência, feita de muitos rostos e múltiplas vozes. Mas que essa evocação se faça com responsabilidade, sem deturpar o seu legado ao serviço de discursos demagógicos e populistas, que nada têm de libertadores e tudo comprometem da verdadeira liberdade.
Referências
- «Constituição de 1933», 11 de abril de 1933, https://www.parlamento.pt/parlamento/documents/crp 1933.pdf. Acedido a 4 de abril de 2025.
↩︎ - Zetho Cunha Gonçalves e António de Sousa, Entrevistas a Natália Correia (Lisboa: A. M. Pereira, 2004), 46. ↩︎
- Natália Correia, «Prefácio», em Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica: (dos cancioneiros medievais à atualidade), 4a (Lisboa: Ponto de Fuga, 2019), 89. ↩︎