O 25 de Abril de 1974 não foi só um golpe militar. Foi um golpe no medo. Foi um abanão ao Portugal fechado, triste, tacanho, amordaçado e – não sejamos ingénuos – conformado. Era um país que não sabia o que era falar alto, rir sem olhar por cima do ombro, amar sem autorização e existir sem um carimbo do Estado. E um dia, de repente, os capitães, com uma simplicidade quase infantil, disseram: “Pronto, já está. Agora falem, cantem, gritem, vivam”.
Antes do 25 de Abril, Portugal era uma peça de museu com gente lá dentro. Um país onde a escola era para poucos, os hospitais eram para quem podia pagar e a guerra era para quem não podia fugir. Não era um país, era um compasso de espera. A PIDE espreitava, a censura mandava, e as paredes tinham ouvidos. Portugal era um sítio onde se ensinava a desconfiar. A psicologia social que o diga: anos de repressão criam sociedades que olham para o chão em vez de para a frente. Mas o 25 de Abril virou tudo do avesso. As ruas encheram-se de gente que se descobriu vizinha, de vozes que se ouviram pela primeira vez sem medo. Uma identidade coletiva nova nasceu naquele dia: a de um povo que queria ser dono do seu destino.
A revolução não se fez só de palavras bonitas. Fez-se de transformações concretas. Os números não mentem (ao contrário de certos políticos). Em 1970, a taxa de analfabetismo era de 25,7%. Hoje? 3,1%[1]. A esperança média de vida era de 67 anos. Agora? 82,6[2]. A mortalidade infantil caiu de 37,9 para 2,6 mil nados-vivos[3]. Parece magia, mas não é: foi a democracia, foi o Serviço Nacional de Saúde, foi o direito à educação. Foi o fim do Portugal dos pequeninos e o começo do Portugal possível.
Mas atenção: a liberdade não é uma coisa que se ganha e pronto. Não se mete na prateleira e fica lá. É uma planta que tem de ser regada todos os dias. E a verdade é que andamos um bocadinho distraídos. A abstenção sobe, a confiança nas instituições desce, o desencanto cresce. Há quem ache que a democracia está garantida, como se não houvesse quem gostasse de a ver ruir.
Algo me diz que as gerações que não viveram uma opressão tendem a subestimar o seu valor. E isso vê-se: muitos dos que hoje desvalorizam a democracia nunca conheceram outra coisa. Não viveram o medo de falar, não sentiram a sombra da censura. Talvez por isso, não saibam o que significa perder o que tomam por garantido.
O 25 de Abril foi um dia, mas devia ser uma forma de estar. Não se celebra como quem celebra um aniversário, com bolo e velas, para depois seguir a vida como se nada fosse. Celebra-se lembrando, ensinando, defendendo. Porque o futuro não está escrito. E porque a liberdade não é um dado adquirido – é uma conquista diária.
Como disse Sophia de Mello Breyner Andresen, “esta é a madrugada que eu esperava”[4]. Cabe-nos garantir que essa madrugada não se transforme num entardecer esquecido. Porque Abril não se agradece, como quem recebe um presente. Vive-se.
[1] Instituto Nacional de Estatística (INE). Censos de 1970 e 2021.
[2] PORDATA – Base de Dados de Portugal Contemporâneo.
[3] Direção-Geral da Saúde (DGS). Relatórios de Saúde Infantil e Materna.
[4] Andresen, S. M. B. (2015). Esta é a madrugada que eu esperava. In O Nome das Coisas. Lisboa: Assírio & Alvim.
Outras referências bibliográficas:
Barreto, A. (2000). Análise Social: Democracia em Portugal. Lisboa: ICS.
Rosas, F. (2019). Salazar e o Poder: A Arte de Saber Durar. Lisboa: Tinta-da-China.
Reis, A. & Azevedo, F. (2004). História de Portugal. Lisboa: Público.
Telo, A. J. (1999). A Revolução de Abril. Lisboa: Editorial Estampa.