Olhando além do quadro otimista onde costuma ser pintada, a liberdade é um paradoxo inescapável nas suas contradições. Se andarmos no seu espectro até chegarmos a uma liberdade ilimitada, esta converte-se em caos. Para Søren Kierkegaard, a ansiedade provém do momento em que temos a liberdade de olhar para o abismo e percebemos que somos livres de saltar – ou não. Sem uma aliança a qualquer finitude, somos navegantes “livres”, mas sem bússola. A compreensão que cabe a nós, e somente a nós, optar por um de incontáveis caminhos, torna a liberdade atordoante em todas as suas possibilidades. Dentro desta condição sem condicionamentos externos, não há bode expiatório para os nossos infortúnios, ninguém a quem culpar a não ser nós próprios. Toda a responsabilidade passa a cair exclusivamente sobre os ombros do homem “livre”, o que, paradoxalmente, fá-lo-ia sentir-se esmagado pela pesada consciência de que cabe a si virar as costas ao abismo ou cair nele.
Em Freedom: A Disease Without Cure (2023)[1], Slavoj Žižek evidencia como, regra geral, o ser humano deseja que lhe seja concedida, não a liberdade incondicional, mas a sua ilusão. Poucos seriam os que optariam pelo comprimido vermelho, se todo o conforto e segurança da ordem, normas, e rotinas dos sistemas que coordenam uma sociedade fossem eliminados – tantos outros arrepender-se-iam a posteriori ao experienciar as consequências dessa escolha.
Mesmo sem se aperceber, o ser humano tende a preferir a liberdade quanto baste, tal como tende a – e tenta – afugentar a ansiedade quando ela espreita por detrás da porta. Essa porta é a liberdade e, como é costumário das portas, é idealmente concebida para estar, por vezes, fechada, por vezes, aberta, não sempre aberta ou sempre fechada. Tal como a ansiedade não se manifesta enquanto um efeito negativo em qualquer instância – surge primeiramente por razões biológicas, não por defeito de fabrico –, também a liberdade não é um bem inquestionável independentemente de como é entendida e aplicada. Tanto a liberdade como a ansiedade encontram o seu ideal nas suas respetivas doses certas.
Porém, a determinação da “dose certa”, no que toca à liberdade da humanidade e todas as suas polaridades, constitui o cerne desta problemática filosófica que se desvenda em várias ramificações. Há quem grite pela liberdade de não pagar impostos, tal como há quem acredite na liberdade de chegar ao último quarto de vida com a segurança de que pode, por fim, viver uma vida despegada de uma rotina laboral e da constante preocupação de dar o corpo ao manifesto para a comida chegar à mesa. Se estes sistemas de segurança social são perfeitos? Não. Mas é de notar como estão engrenados noutros sistemas também estes imperfeitos. Engrenagens estas que rodam ao ritmo da desequilibrada máquina que é o capitalismo globalizado e neoliberal do século XXI.
Dentro da máquina capitalista, a liberdade é expressa através da capacidade de se escolher entre uma panóplia de comodidades, um estilo de vida mais assim ou mais assado, e votar em candidatos políticos e partidos. Contudo, estas expressões de liberdade tornam-nos complacentes, desencorajando qualquer tipo de mudança sistémica significativa, assegurando, assim, a continuação e preservação destes sistemas. Tomamos o comprimido azul e o ciclo continua, só que, ao contrário do mito prometeico de uma evolução linear, arriscamos ser transigentes na nossa própria destruição. Como diz Žižek, a consciência de que a qualquer momento o fumador pode deixar de fumar garante que nunca o faça, que se renda sempre a mais um cigarro ou último maço.
A utilização da palavra “liberdade” dá a crer que tudo o que lhe vem atrelado deve ser defendido. O capitalista neoliberal crê na liberdade do mercado de se regular a ele próprio sem intervenção do “pai tirano” que é o governo. Mas, como Noam Chomsky e Marv Waterstone explicam em Consequences of Capitalism: Manufacturing Discontent and Resistance[2], a crença de que o mercado consegue regular-se a si mesmo é de essência ideológica e não empírica – a título de exemplo, temos a crise de 2008. Aos olhos da doutrina neoliberal, os “princípios do mercado” tomam precedência sobre direitos individuais, detetando perigo quando a democracia se torna “excessiva”. Por outras palavras, é priorizada a liberdade do empregador de utilizar os meios disponíveis, incluindo a exploração do trabalhador, para maximizar os lucros.
A liberdade, portanto, não é uma entidade fixa enquanto conceito, mas engloba várias expressões não todas análogas na sua validade ética. O conceito de “liberdade” pode ser uma arma de manipulação retórica a favor de uma agenda política, cobrindo ideologias com capas promissoras. Ao contarmos com respostas fáceis para problemas complexos, não conseguimos desvendar o caráter da liberdade que está a ser prometida e a quem é que beneficia.
A ignorância não é liberdade. Bem como o conhecimento, quando manipulado por incentivos questionáveis, também não o é. Sem um norte no que toca a factos, não há possibilidade de resistência proativa a sistemas que lucram com a ignorância coletiva. Se intencionamos preservar a integridade dos nossos sistemas democráticos, é preciso distinguir aquilo que é liberdade do que apenas lhe veste a pele. Em The Ethics of Ambiguity (1947)[3], Simone de Beauvoir ensina-nos que a liberdade no seu esplendor é uma liberdade ética, argumentando que é “no conhecimento das verdadeiras condições da nossa vida que devemos buscar a força para viver e a razão para agir”. Pode certamente ser com referência a esta liberdade ética que Jean-Jacques Rousseau considera o homem que se assume mestre de outros como sendo ainda mais escravo do que os restantes[4].
Desvenda-se, por fim, uma possível resposta à questão que abre este pequeno ensaio: Quando se cantar pela liberdade, que não se cante apenas pelo hábito de um valor abstrato ou para mergulhar na nostalgia confortável de um passado já ganho. Cante-se contra o concreto de vozes tiranas que ameaçam remeter qualquer expressão de liberdade genuína ao silêncio.
[1] Žižek, S. (2023). Freedom: A Disease Without Cure. Londres: Bloomsbury Academic.
[2] Chomsky, N. Waterstone, M. (2020). Consequences of Capitalism: Manufacturing Discontent and Resistance. Londres: Hamish Hamilton Ltd.
[3] Beauvoir, S. (1947). The Ethics of Ambiguity (Trad.: Bernard Frechtman). Nova Iorque: Citadel Press.
[4] Rousseau, J. J. (1998). The Social Contract. Ware: Wordsworth Editions.