“Em abril, águas mil”

"Hoje, quero falar do poder da música nos tempos de revolução. A coragem que José Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fernando Tordo, Manuel Freire, Paulo de Carvalho e tantos outros e outras tiveram para escrever o que escreveram, cantar o que cantaram, para que a esperança prevalecesse e alcançasse aqueles que os ouviam."

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No meu último artigo, explorei o simbolismo da arte e o significado que tem para cada um. A arte é sentir, é deixar o racional no bolso. “Existem coisas que não se explicam, sentem-se”, e a arte é isso mesmo. É o deixar-se ir, e o pensar, esse fica para quando estivermos a vir.

O provérbio popular “em abril, águas mil” fala de tudo menos do tema que me traz aqui este mês. Sim, efetivamente, quando o provérbio nasceu, o seu destino não estava relacionado com a revolução que aconteceu em Portugal, no dia 25 de abril de 1974, mas, para mim, estando a escrever estas palavras em pleno abril, em pleno dia de chuva, o provérbio assumiu outra conotação. Hoje, as “águas mil” são as lágrimas daqueles que choraram no dia da Revolução dos Cravos. Lágrimas de tristeza, angústia e mágoa, medo e inquietação, mas também daqueles que choraram de felicidade, ardor e amor, esperança e êxtase. Para mim, isto é arte.

Estamos em pleno Abril, a celebrar 51 anos de liberdade, liberdade que hoje damos como garantida. Eu nasci livre e sou livre, seja lá isso o que for. Posso estar preso mesmo sendo livre, mas talvez deixe este tema para outro dia. Hoje, quero falar do poder da música nos tempos de revolução. A coragem que José Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fernando Tordo, Manuel Freire, Paulo de Carvalho e tantos outros e outras tiveram para escrever o que escreveram, cantar o que cantaram, para que a esperança prevalecesse e alcançasse aqueles que os ouviam.

É difícil falar de algo que não vivi, algo que não experienciei. Apenas posso falar do que li, do que ouvi, e só me resta interpretar. Interpretar a arte dos corajosos e destemidos, que lutaram pela liberdade, que lutaram contra o regime, contra a ditadura, contra a prisão em que viviam. É tão nobre aquele que agarra na caneta como aquele que agarra na espingarda ou num simples cravo.

A música funcionou como uma amiga, uma companheira escondida, um abraço sofrido, uma luz contida, mas sempre acesa, uma força tímida, mas contínua. A música foi o altifalante e a voz de quem cantou, tantas outras levou.

Não consigo imaginar sequer a sensação desse Abril, posso tentar recriá-la e imaginá-la, mas como é que vou poder senti-la? Hoje escrevo o que quero, escrevo o que penso e sinto sem receio de ser censurado por um lápis azul. Mas não digo que não penso no que escrevo, porque penso. Sei que não posso escrever tudo, existem muitos olhos, muitas opiniões, mil maneiras de ver as coisas. Talvez não seja livre então, porque se fosse completamente livre, escreveria tudo aquilo que me apetecia. Na verdade, estou cativo de mim próprio e do que me rodeia.

Mas porque sou constantemente inconstante, consigo, sim, sentir a revolução. Como? Através das letras oprimidas e revolucionárias, as mensagens de desespero e de apelo que tantas vozes cantaram. O universo artístico interventivo das canções, cantigas e poemas criados nos tempos de ditadura continua a ecoar naqueles que as querem ouvir.

Não me quero focar em nenhum cantor em específico daquela época. Todos tiveram um papel fundamental na partilha de esperança e coragem. Talvez tenham existido bandas e cantores como eu, que escreveram e cantaram, sozinhos ou acompanhados, nos quartos ou nas ruas. Talvez tenham encontrado alguém para partilhar e confortar, talvez um dos seus versos tenha sido amor, tenha sido luz, para quem vivia na escuridão.

Muitas músicas marcaram e continuam a marcar gerações, mas gostaria de terminar este artigo com a referência a uma canção que nasceu oito anos depois da revolução, “Inquietação“, escrita por José Mário Branco, um cantor da revolução de Abril. Não sei o que a música simbolizava para ele, mas sei o que é para mim. Não sei se está ligada à revolução, mas terão esses tempos deixado marcas inquietantes no autor? Talvez. Mas a beleza pode estar nisso mesmo, em não saber. Quem sabe?

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda
1


Referência

  1. Trecho da letra “Inquietação”, escrita por José Mário Branco. ↩︎

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O meu nome é Ricardo Oliveira Neto e tenho 24 anos. Sou mestre em Comunicação Multimédia Audiovisual, tendo terminado o meu curso em 2023 na Universidade de Aveiro.

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