‘Não é pessoal’: Homicídio Qualificado v. Homicídio Estrutural

“Para muitos, tanto vozes soltas na Internet como os que se reúnem com cartazes à porta do tribunal, Mangione é algo entre um mártir justiceiro e um anti-herói do povo, mas, para todos os efeitos, um símbolo. Esse simbolismo, que quebra os padrões do que é admissível segundo o 'status quo', assusta. Mas a quem?”

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«Estou profundamente emocionado – e grato – por todos aqueles que me escreveram a partilhar as suas histórias e a expressar o seu apoio. É impressionante como esse apoio transcendeu divisões políticas, raciais e até mesmo de classe, com correspondência a chegar em grande peso ao MDC vinda de todo o país e à volta do mundo. Ao passo que me é impossível responder à maioria das cartas, por favor saibam que eu leio todas as que recebo. Obrigado novamente a todos que dedicaram tempo para me escrever. Anseio por mais mensagens no futuro.»
Luigi Mangione
14 de fevereiro de 2025

No dia 4 de dezembro de 2024, pouco antes das sete da manhã, um assassinato em pleno Midtown Manhattan encadearia uma saga de eventos mediáticos que captariam atenção internacional e espoletaria o início de um movimento social baseado na necessidade de reforma sistémica ao nível da nação. Brian Thompson, CEO da United Healthcare (UHC), a seguradora de saúde pertencente à poderosa corporação multinacional UnitedHealth Group, foi baleado três vezes enquanto caminhava em direção a uma reunião anual de investidores. Quando a polícia chegou ao local, os invólucros das balas permaneciam na cena do crime. Em cada um, respetivamente, estavam gravadas as seguintes palavras: Deny. Delay. Depose.

“Delay, Deny, Defend: Why Insurance Companies Don’t Pay Claims and What You Can Do About It” é um livro de 2010 onde o autor, Jay M. Feinman, discute as táticas usadas pelas seguradoras de saúde americanas para maximizar os lucros e minimizar pagamentos. Após o assassinato de Thompson, não necessariamente na mesma ordem, os seguintes itens experienciaram frenesins de compra: o livro de Feinman,  mochilas e casacos iguais aos do suspeito e bonés verde-relva com a letra L estampada no centro. Ainda o culpado andava a monte quando, em pleno Central Park, um grupo significativo de nova-iorquinos participou num concurso informal em que ganhava quem mais se fizesse parecer com quem ainda não sabiam ser Luigi Mangione.

Menos de uma semana após o homicídio, Luigi Mangione, de 26 anos, foi detido enquanto comia hash browns por volta das dez da manhã num McDonald’s em Altoona, na Pensilvânia. O empregado delator ligou para a polícia local, por oposição ao número estipulado para receber a recompensa do FBI de 50 mil dólares, involuntariamente abdicando dela. De facto, poderá até mesmo ter saído a perder, considerando que esse mesmo estabelecimento de fast food seria bombardeado com comentários e avaliações negativas, como: «Eu entrei e vi um RATO ao balcão. Para tornar tudo pior, um rapaz com um ar completamente inocente, que estava apenas entretido com a sua comida, foi preso! Não vão, eles contratam ratos. #libertemluigimangione»

Pesando apenas os factos elementares, a indiferença para com a morte de um homem e a onda de apoio que segue os passos do alegado homicida podem parecer bizarras, senão mesmo hediondas. Mas tal impressão tende a restringir-se a quem nunca experienciou (ou assistiu em primeira mão a quem experienciasse) o sistema de tortura denominado healthcare system na América. Os indivíduos cuja reação é de condenação intransigente, ao mesmo tempo em que ignoram as ramificações contextuais, das duas uma: ou logram de um sistema de saúde comparativamente funcional ainda que perro e imperfeito – como nós portugueses – ou das falhas fatais do sistema americano, sendo indivíduos cujo estatuto social e económico os liberta de uma total dependência da ganância capitalista quando a saúde lhes falha.

Os EUA são a nação que mais despende em saúde per capita e, no entanto, os americanos não são o povo nem mais saudável nem com a esperança mais elevada de vida. Anualmente, enquanto o cidadão comum paga em média entre seis mil e sete mil dólares pelas suas apólices, estas seguradoras recebem milhares de milhões de dólares em lucros. A UnitedHealth Group domina o mercado de saúde do país, e a UHC tem a percentagem mais alta – 32% – de pedidos de cobertura negados, o dobro da média nacional. Este monopólio – que culminou na abertura de um processo antitrust por parte do Departamento de Justiça (DOJ) – posiciona a UnitedHealth Group no top 10 das corporações com maiores rendimentos a uma escala mundial. A nível nacional, posiciona-se no top 5, à frente da Alphabet (Google).

Em fevereiro de 2025, o Wall Street Journal revelou que o DOJ está novamente com a lupa sobre a UHC por abuso fraudulento do sistema federal de cobrança da Medicare. Para além destes pagamentos extras incitados pelo registo de diagnósticos questionáveis, a United Healthcare, sob a chefia de Thompson, coagia o paciente a ter a absoluta certeza de que estaria em vias de morte – não meramente com a impressão – para se deslocar ao hospital. Caso contrário, o prognóstico anteciparia uma dívida devastadora. Porém, como seria de prever, a maioria das pessoas não possui o conhecimento necessário para compreender se a sua condição é ou não iminentemente fatal. Isto é, até ser tarde demais.

Ainda sob a supervisão e aprovação do seu CEO, a UHC implementou um sistema IA que faria recomendações de tratamento e negaria cobertura a pacientes idosos, sendo descoberta uma margem de erro de 90%. Algoritmos também seriam usados para identificar terapeutas e psicólogos que tratassem pacientes demasiadas vezes. Após um telefonema, estes profissionais de saúde mental viam-se subsequentemente despidos dos seus reembolsos.

Enquanto CEO, Thompson recebia cerca de dez milhões de dólares anuais, o que algumas pessoas apontaram ser parte do topo de 1% dos cidadãos com melhores salários. Na verdade, estes ganhos posicioná-lo-iam no ainda mais exclusivo 0,01%. Uma porção significativa dos seus rendimentos provinha de ações da United. Logo antes da corporação ser investigada por suspeita de monopólio e tentativa de expansão do mesmo, Thompson apressou-se a vender as suas ações, o que, por sua vez, levou a uma acusação de negociação com informação privilegiada (insider trading), também por parte do DOJ.

A indiferença – e até mesmo a celebração – de muitos americanos para com a morte de Thompson reflete o desdém com que estas seguradoras garantem o aumento de lucros a custo de dezenas de milhares de vidas humanas todos os anos. Por oposição, Mangione é, para este público, uma personificação da frustração e descontentamento desmedidos com um sistema que não dá esperanças de algum dia vir a melhorar significativamente. Há décadas e décadas que o Senador Bernie Sanders parece uma cassete estragada, vira o disco e toca o mesmo monólogo sobre o direito dos americanos a um sistema de saúde universal e “Medicare for All”. Porém, acaba sempre por se debater e esbarrar contra os mesmos obstáculos estruturais resistentes a revisão. Hoje em dia, critica Donald Trump por “não ter uma palavra” a dizer sobre como consertar o sistema nacional de saúde.

Esta imunidade a qualquer tentativa de reavaliação e reforma torna-se escandalosamente evidente na reacção a este caso. De um lado desta corda em tensão, está o povo americano, unido para além da polarização política; do outro lado, a exercer uma força contrária, está a classe elite, protectora da integridade do status quo que a beneficia.

Após o assassinato a 4 de dezembro, nomes e fotos de CEOs e outros executivos foram removidas dos websites e perfis de social media. A governadora de Nova Iorque considerou abrir um hotline para líderes corporativos que receassem pela sua segurança. Homicídios no estado são uma ocorrência diária, como tal, a mobilização de recursos para capturar Mangione foi algo de indescritível quando comparada com o silêncio que se segue à morte precoce do cidadão não-privilegiado. Quando Luigi foi escoltado por um miniexército durante o seu perp walk público pelas ruas da metrópole, comparou-se a demonstração de poder excessiva a algo que seria mais apropriado se o acusado fosse um némesis do Batman – aliás, uma pesquisa por “perp walk” no Google mostra fotos desta procissão teatral nos primeiros resultados.

Na Flórida, uma senhora de 42 anos e mãe de três filhos foi detida e acusada de ameaça de terrorismo por dizer, após ter tido um pedido de cobertura negado por parte da sua seguradora Blue Cross Blue Shield (a mesma seguradora que considerou deixar de cobrir o custo de anestesias passadas duas horas de operação), ao telefone: “Deny. Delay. Depose. Vocês são a seguir.” A pena máxima seria de 15 anos de prisão, mas, felizmente, cerca de dois meses depois, no dia 20 de fevereiro, as suas acusações foram arquivadas.

Em janeiro, uma cirurgiã do Texas viu-se forçada a abandonar o bloco operatório, onde operava uma paciente com cancro da mama, para atender o telefone à UHC e justificar ao funcionário que a doente necessitaria de pernoitar no hospital. Frustrada com este sintoma de um problema maior, a doutora filmou um TikTok a partilhar o ocorrido. Mais tarde, não só foi revelado que a UHC se recusou a deixar ficar a paciente no hospital – o que seria de esperar no seu tipo complexo de cirurgia – como também enviou, através de uma firma de advogados, uma carta a ameaçar processar a cirurgiã legalmente caso ela não apagasse o vídeo e publicasse uma desculpa pública à seguradora. Em vez de se submeter ao silêncio, a Doutora Elisabeth Potter está agora envolvida numa batalha legal contra a ciclópica United Healthcare.

No meio desta epopeia intérmina, quem é Luigi Mangione? Para responder a esta questão, delinear um antes e depois talvez seja o método mais esclarecedor. Luigi Nicholas Mangione nasceu a 6 de maio de 1998, no seio de uma afluente família ítalo-americana de Maryland. Melhor aluno da turma no secundário, prosseguiu com os seus estudos superiores – “M.S.E. and B.S.E. in Computer Science” – numa das mais prestigiadas universidades do país. Dotado de um espírito aventureiro e uma inclinação para a atividade ao ar livre, também mantinha uma conta Goodreads ativa onde pontuava e escrevia avaliações de livros bastante variados entre si. Um deles, talvez o mais incriminatório, seria o Manifesto de Ted Kaczynski, que pontuou com 4 estrelas. Em contrapartida, atribuiu a The Lorax de Dr. Seuss a pontuação máxima de 5 estrelas. Antes de ficar com a conta inativa e posteriormente privada, a última citação a que deu like no website pertence a esse livro infantil: «A menos que alguém como tu se importe mesmo muito, nada vai melhorar. Não vai».

Todos os que o conheciam antes do crime – do qual é inocente até declarado culpado – não aparentam ter uma palavra danosa a pronunciar a seu respeito. Para todos os efeitos, um rapaz perfeitamente normal, ainda que – comparativamente com o cidadão de classe média e baixa – avantajado pelo berço e com um currículo que pressupunha um futuro brilhante. Isto é, até aos anos condicionados por uma espondilolistese (spondylolithesis) culminarem numa mudança radical de trajetória.

Ao que se sabe, Luigi apanhou doença de Lyme aos 13 anos de idade, algo que não só mais tarde veio a afetar a sua cognição, dificultando o decorrer dos seus estudos superiores, como acabou por ser catalisador para a grave e limitativa condição crónica a que se chama espondilolistese. Com 20 e poucos anos, tomou residência temporária no Hawaii, onde vivia em comunhão com outros nómadas digitais. Luigi terá tentado fazer uma primeira e única aula de surf – os médicos haviam-lhe dito que a sua doença não o impediria de participar em tais atividades – porém, o esforço foi suficiente para o acamar por uma semana. A partir daí, a lesão agravou-se.

Espondilolistese, no caso de Luigi em específico, implica uma vértebra na coluna lombar deslocar-se do sítio, exercendo assim pressão sobre um nervo. Nestes graus mais severos, não só provoca uma dor constante, profunda e inescapável, como é opressivamente limitante da qualidade de vida, ao ponto de certas ações quotidianas – como levantar da cama ou até mesmo segurar a bexiga – ficarem fora dos perímetros das possibilidades.

Pelo menos ao início, Luigi manteve-se positivo, algo que pode ser inferido através daquela que se pensa ser a sua conta no Reddit. Em posts e comentários anónimos, desabafava sobre as complicações que enfrentava no dia-a-dia, mas, sobretudo, expressava apoio e oferecia sugestões a outros indivíduos que padeciam da mesma condição. Num comentário em resposta a um usuário de 30 anos com a mesma patologia que revela ter visto dois neurocirurgiões que lhe disseram que ninguém lhe operaria a coluna “antes dos 40”, Luigi lista três possíveis planos de ação:

1. Continua à procura de diferentes cirurgiões. “Ninguém vai operar-me as costas antes dos 40 anos” é um absurdo vindo de um profissional médico que não tem perspetiva. Se as tuas costas estão danificadas a ponto de ser insuportável viver assim, a idade não tem nada a ver. Bons cirurgiões entendem isto e irão operar com base nos teus sintomas e anatomia.

2. Diz-lhes que estás “incapaz de trabalhar” ou de exercer a tua profissão. Vivemos numa sociedade capitalista. Descobri que a indústria médica responde com muito mais urgência a essas palavras-chave do que a uma descrição da dor insuportável e do impacto que esta tem na tua qualidade de vida.

3. Plano Z: Finge um pé caído (“foot drop”) ou mija-te. Esta é a opção nuclear, mas chega a um ponto em que é simplesmente ridículo recusarem-se a operar a tua coluna partida.

Supostamente, a operação marcada para 2023 iria restituir-lhe a ansiada normalidade. Ao que parece, Luigi melhorou, mas não por muito tempo. Quando um amigo perguntou-lhe por mensagem telefónica como correra a cirurgia, Luigi teria respondido: “longa história”. O raio-X pós-operatório é uma das fotos que compõem a capa do seu perfil no X. Não muito depois de voltar à estaca zero, Luigi renunciou ao contacto com amigos e família e desvaneceu do mapa. No mês anterior ao assassinato de Thompson, a sua mãe deslocou-se à esquadra para o registar como desaparecido.

Para muitos, tanto vozes soltas na Internet como os que se reúnem com cartazes à porta do tribunal, Mangione é algo entre um mártir justiceiro e um anti-herói do povo, mas, para todos os efeitos, um símbolo. Esse simbolismo, que quebra os padrões do que é admissível segundo o status quo, assusta. Mas a quem?

A narrativa engendrada pela elite, repetida pela classe política e promovida nos media mainstream, não corresponde à visão do cidadão comum, mas tenta manipular a perceção a favor da condenação inexorável do acusado. Contudo, e numa demonstração rara de unanimidade, estas tentativas não movem o público como seria planeado. Para o cidadão comum americano, graduados em advocacia inclusive, é ilógico que a acusação inicial de homicídio em segundo grau tenha evoluído para uma acusação de homicídio em primeiro grau enquanto ato de terrorismo. Segundo o código penal de Nova Iorque, homicídio em primeiro grau é reservado para casos estritos, com agravantes específicas e não apenas uma questão de premeditação. A única alínea que se aplica – isto é, se pensarmos pela perspetiva de empresários executivos – é terrorismo. Pelo mesmo crime, Luigi tem processos criminais em três jurisdições, sendo que, as suas acusações ao nível federal podem levar à morte enquanto pena máxima – a única avenida possível para se executar um indivíduo num estado como Nova Iorque, que aboliu a pena capital em 2004 e não executa ninguém desde 1963.

Brian Thompson morreu, tal como morreram incontáveis números de cidadãos devido aos incentivos que regem uma sociedade estruturada para tratar a saúde como um privilégio anexado ao estatuto monetário e social. Mas, ao passo que milhões de americanos tiveram finais ignóbeis, deixando para trás trauma, ressentimento, dor e até dívidas esmagadoras aos que ficam, o assassinato de um CEO gerou um diálogo aceso e uma reacção colectiva que, se tiver a conclusão por que muitos anseiam, poderá vir a salvar milhões de vidas. Enquanto o ato fatal não deve ser romantizado e qualquer possibilidade de réplica deve ser condenada, é difícil contrapor que terá havido qualquer outra iniciativa pacifista nas últimas décadas que tenha gerado mais atenção e diálogo, da base da pirâmide social até ao vértice, para os problemas gritantes no sistema de saúde na América.

Sim, a violência deve ser o último recurso. Não, matar não é solução. Mas o que acontece quando o imperativo categórico de “não matarás” é utilizado para desmanchar qualquer argumento que implora à classe elite e governante para parar de ignorar que “não matarás” também se deve aplicar aos sistemas que regem uma sociedade?

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Em 2020, concluí a licenciatura em English with Creative Writing na Queen Mary University of London, havendo graduado com First Class honours. Inscrevi-me em 2022 no mestrado em Edição de Texto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalho em redação de conteúdos para publicações estrangeiras desde 2021.

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