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Variação Anatómica

”Creio que não é inocente a escolha do artigo que precede "fall" no título Anatomy of a Fall, ao invés de Anatomy of the Fall. Um artigo indefinido, ao invés de um definido – podemos nós escolher qual a queda que mais nos interessa.

Tempo de leitura: 4 minutos

Anatomia de uma queda: a da bola, cena que abre o filme, a do corpo que perde a organização interna que o mantinha como ser animado, a da relação entre Sandra e Samuel, casal protagonista, a da vida do seu filho, Daniel, aquando do acidente que lhe vitimou a visão. A ordem cinematograficamente apresentada não é esta, mas talvez tenha sido a queda do filho que mais acelerou a queda da qual se ocupa o filme: a de uma relação. 

Creio que não é inocente a escolha do artigo que precede “fall” no título Anatomy of a Fall, ao invés de Anatomy of the Fall. Um artigo indefinido, ao invés de um definido – podemos nós escolher qual a queda que mais nos interessa. 

Durante a primeira meia hora do filme, somos convencidos de que será feita uma dissecação (anatómica?) do tombo dado a partir do terceiro andar, a fim de explicar o modo como ocorreu e vitimou Samuel, no entanto, assim que a progressão se estabelece, torna-se evidente que o argumento tem por objetivo explorar a queda de uma relação. Primeira ironia.

Outra: nada estranho que a única testemunha seja alguém cuja visão não é perfeita – a justiça também é cega (ou deveria ser). Mais do que a atribuição de culpa, é Daniel (o filho da relação caída ou em queda?) que mais importa, porque é nele que se projeta o tema mais significativo, a meu ver, abordado neste filme: a dissonância cognitiva. 

A existência de duas realidades, comportamentos ou atitudes que entram em conflito, de forma mutuamente exclusiva, pelo menos à luz da nossa interpretação, coloca-nos nas mãos de um desconforto que nos impele a criar uma narrativa suficientemente adequada e capaz de abarcar, em simultâneo, aquelas duas ideias. Sendo isso raramente possível, o mais provável é ser feita uma escolha de uma das realidades em detrimento da outra. A cegueira poderá ajudá-lo a decidir (ou não).

O piano é metáfora do modo como esta dissonância cognitiva perturba Daniel, e é subtil a forma como este paralelo é realizado. A primeira vez que o ouvimos tocar é quando este tenta, sofregamente, arrancar àquelas teclas, de forma fluida, uma difícil peça de música: Asturias, de Isaac Albéniz. Sozinho toca altos tons de urgência e desarmonia. Com ele ainda a tocar, a mãe fala ao telemóvel com o seu advogado para lhe contar aquilo que ela acredita ter sido uma tentativa de suicídio por parte do marido, ocorrida há alguns meses. Estão apresentadas as duas realidades. 

Daniel até já havia começado a escolher uma delas, quando mente ao modificar o seu discurso: afinal regressou a casa, ainda se encontrava no seu interior, daí ter presenciado a discussão, não grave, defende ele, no dia da morte do pai. Ainda toca Asturias (a tal representação da escolha difícil que precisará de fazer) mais uma vez, mas é interrompido pela mãe que começa a tocar algo diametralmente oposto: The Prélude, de Chopin.

Tocam os dois até Daniel se levantar abruptamente e recusar continuar: símbolo do facto de ainda não se encontrar totalmente preparado para aceitar a ideia de defender a mãe em tribunal – o que viria a fazer posteriormente ao sugerir que talvez o pai se tenha mesmo suicidado. Ele volta ao piano, desta vez sem a mãe, e toca Chopin – assume totalmente essa narrativa como verdadeira e passará a viver em função dela. Acabaria assim a sua dissonância cognitiva, atingida seria a paz.

É uma versão diferente da mesma peça que encerra o filme – metáfora do comprometimento total de Daniel face a esta decisão. Trágico o facto de ser um miúdo de 11 anos a ter de a tomar. A melhor capacidade de tocar piano representa a evolução da maturidade do rapaz: um ano mais tarde, a fluidez tão almejada encontra-se mais perto e Asturias saiu significativamente melhor – a dissonância reduziu-se à medida que ele vincava a narrativa do pai suicida e aceitava a mãe como inocente. 

Escrito, juntamente com o seu companheiro Arthur Harari, e realizado por Justine Triet, existem vários paralelismos entre a vida pessoal deles e as personagens do filme: a escrita e o conflito que se gerava entre eles por causa disso. Harari, não como argumentista, mas como ator, surge em Le procès Goldman (2023), personificando o advogado Kiejman. Dois filmes do mesmo ano com parecenças: ambos são “courtroom dramas”. O sistema judicial francês não mudou assim tanto desde os anos 70 até hoje… infelizmente.

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Ricardo Alves da Silva tem 21 anos e frequenta o Ensino Superior, no qual estuda sobre Ciência e Saúde.

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