Ontem dei por mim a descansar.
Desde os meus 16 anos que trabalho fins-de-semana, feriados e férias. Fosse a servir cafés, gelados ou bacalhau com natas, ou em projetos pessoais, o conceito de descansar ao fim-de-semana sempre me foi desconhecido. Não por necessidade, mas por dever moral. Acabei por me viciar na ideia de usar o meu dinheiro para comprar as minhas coisas, à parte do apoio dos meus pais. Mesmo que não gastasse o dinheiro, viciei-me em ter cada vez mais. A motivação pelo dinheiro transformou-se na motivação na independência financeira, que, por sua vez, me levou a apaixonar-me pelo trabalho árduo.
No entanto, ontem dei por mim a descansar.
Trocar sair à noite por trabalhar à noite tornou-se na minha imagem de marca. Fundei uma empresa aos 19 anos com o intuito de “ser alguém e rápido”, “ganhar dinheiro e ser independente” ou “provar o meu valor”. Aliás, não conseguia entender quem não ia trabalhar ao fim-de-semana. “Não gostariam de ser independentes? Não quereriam libertar os ombros dos pais?” dizia eu. Felizmente, e com muito trabalho à mistura, consegui começar a evitar estas comparações. Cada vida é uma vida: são demasiadas variáveis a ter em conta. E este tipo de autoprojeção no outro, de modo a conseguir julgá-lo, não me levara a lado nenhum. Percebi que se queria este valor – o trabalho árduo, o esforço, o que preferirem – teria de o sustentar intrinsecamente. Assim o fiz.
No entanto, ontem dei por mim a descansar.
Trocar sair à noite por trabalhar à noite continua a ser a minha imagem de marca. Para uma pessoa que internalizou o ódio ao descanso, descansar é complicado. Por momentos pensei que estivesse em dissonância cognitiva, já que se realmente o trabalho árduo é um valor meu, todas as consequências desse valor seriam facilmente ultrapassadas. Ainda estou a trabalhar neste ponto de me vitimizar, mas a minha resiliência agarra-me aqui: é saber que está a ser difícil e mesmo assim fazê-lo (sim, o cliché).
Mas ontem dei por mim a descansar, e achava que tinha gostado.
Aliás, 2023 foi o ano em que escrevi em pedra que iria escolher apenas projetos que me movessem intrinsicamente, genuínamente (este privilégio é-me possível dado ainda estar a estudar, o que ajuda bastante nesta escolha que tenho, no entanto, estes projetos que escolho são realizados de forma pós-laboral, sendo o curso um trabalho a full-time – ou seja, imagino que esta história se adapte a pessoas já inseridas no mercado de trabalho). E, como comecei a recusar projetos, comecei a não ter nada para fazer no tempo livre. Tempo livre, conceito que demorei a entender. Comecei a conseguir apanhar sol ao fim-de-semana, ir beber um copo com os amigos, etc. Concomitantemente a esse tempo livre, começaram os sentimentos de culpa – o meu super ego a chamar-me… “Abre o computador Jaime”, “Pára de gastar dinheiro numa cerveja e vai fundar mais empresas…” Apesar de ridículo, são representações muito próximas da verdade. Após me sentar frente a frente com esses sentimentos, percebi que o que gostava mesmo era de trabalhar. Não era só culpa, era desejo. Após uma reflexão enorme e pesada – que não irei expor aqui por motivos de espaço – percebi que o que eu queria mesmo era escrever o meu nome na história da Humanidade, e que o trabalho seria o meu veículo. Esta revista digital é uma das partes desse veículo. Um projeto em que perco horas e horas com um sorriso na cara.
Isto é, ontem dei por mim a descansar, mas isso não me satisfez.
Pierre Hadot cunhou o termo “vida filosófica”, onde cada minuto da nossa vida é fundamentado filosoficamente – i.e., as teorias TÊM de passar à prática diária e constante, de forma quase religiosa. Analogamente, se tenho a minha ambição bem definida, qualquer minuto que não seja direcionado direta ou indiretamente para essa ambição, é um minuto desperdiçado. Um minuto de descanso pode existir, mas terá de ser o conceito de “descanso ativo” do mundo do fitness – i.e., descansar com um propósito. Esse propósito poderá ser o cultivo artístico ou meditativo, mas sempre direcionado para o objetivo a longo prazo. Só assim consigo acalmar o meu super-ego com a desculpa de que me estou a cultivar para trabalhar melhor para a próxima. Mas é este o tipo de vida que quero. Quero marcar a Humanidade e só depois descansar. O meu potencial merece ser atingido. Se não conseguir marcar o meu nome na Humanidade, saberei que tentei.
Irei descansar menos no futuro.
Sempre consciente do meu corpo, mente e alma, que são as prioridades. Mas este não é mais um artigo de quiet quitting e de equilíbrio vida/trabalho, é o seu oposto, impulsionado por uma grande ambição pessoal e não por dinheiro nem motivos “mundanos”.
Disclaimer: em lado nenhum neste artigo refiro que a minha escolha de vida é superior a qualquer outra. O sofrimento a que me exponho diariamente é uma escolha pessoal, não uma bandeira. Ademais, nem sempre consigo cumprir o que está escrito supra, mas estou a trabalhar nisso.
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