Remember, Remember, the 5th of November

"“Fascista” veio a tornar-se num rótulo quase vazio, arremessado de um lado para o outro com a intenção de que porventura pegue, e será talvez por isso que denominar Trump de fascista deixou de assustar quem ainda deveria ter receio do que aí vem."

Tempo de leitura: 10 minutos

É a antecipada noite de 5 de novembro 2024 – em Portugal já dia 6 – e os votos de 50 estados estão a ser contados enquanto o povo americano sustém a respiração. Estamos no início da contagem e Donald Trump vai à frente. Nada está perdido; o candidato Republicano ainda está longe dos 270 votos eleitorais e, a Pensilvânia, entre outros ‘swing states’, continua por decidir.

Por esta altura, reconforto um colega de trabalho ao relembrar-lhe a existência do fenómeno ‘Blue Shift’, que por norma sucede uma ‘Red Mirage’. Foi em grande parte devido a esta tendência que, em novembro de 2020, antes de todos os votos serem contados, Trump lançou o seguinte ‘tweet’: “STOP THE COUNT!”. O Mestre disse, e os seguidores arregaçaram as mangas, dirigindo-se a centros de voto – em Michigan, por exemplo – e numa só voz gritaram a favor do fim da integridade do processo democrático.

Na cabeça destes, estas demandas fervorosas seriam em prol de uma democracia incorrupta. Cerca de dois meses mais tarde, a 6 de janeiro de 2021, a violenta invasão ao Capitólio também foi, na conceção da manada, um ato de patriotismo. A expressa intenção de enforcar o ex-vice-Presidente Mike Pence, que se recusou a partilhar da vontade de um ‘coup’ político do bilionário Nova Iorquino e que estava disposto a conceder os resultados, seria também para o bem da nação.

Mas o esperado ‘Blue Shift’foi engolido por uma ‘Red Wave’. A minha intenção estava longe de ser dar falsas esperanças ao meu colega. Nos últimos meses, depois de Joe Biden ter sido impelido a abandonar a corrida, permiti-me ter fé, pois, da minha perspetiva, não havia forma de o povo americano reeleger um criminoso aspirante a autocrata, não só com base em evidência revelada durante os últimos 8 anos, mas principalmente depois da campanha que liderou este ano.

Trump não só venceu como, pela primeira vez, saiu vitorioso com tanto o colégio eleitoral como o voto popular do seu lado, algo que não havia sucedido em 2016 contra Hillary Clinton. Se antecipava – ou melhor, estava esperançosa – que Trump não iria ganhar, permitindo que, pela primeira vez na história do país, o título de ‘commander-in-chief’fosse atribuído a uma mulher que, por sinal, construiu uma carreira admirável sem acesso ao nepotismo das elites, muito menos tinha expectativas que este fosse arrecadar o voto popular com várias classes demográficas decisivamente do seu lado – a primeira vez em duas décadas que um candidato Republicano havia atingido este feito.

Um dos meus primeiros pensamentos quando acordei nessa manhã foi a pesada ironia das eleições terem ocorrido a 5 de novembro, a conhecida como ‘Bonfire Night’ ou ‘Guy Fawkes Day’no Reino Unido, um dia popularizado internacionalmente na indústria do entretenimento através de V for Vendetta.

Enquanto bebia café, enviei uma mensagem de apoio a uma amiga americana, lamentando o resultado e partilhando da dor, pelo menos até ao ponto que me é possível enquanto não residente dos EUA. A resposta que mais tarde obtive seria fora de carácter em quaisquer outras circunstâncias. Começava:“My mother, [my friend], and I are all going to take gun [classes] and get permits to carry. If I’m about to lose my rights, bodily protection, and health care availability, I’d rather go to jail for defending myself against an attacker.”

Este sentimento seria ecoado, espontaneamente e sem incentivo de ninguém, por membros americanos da minha equipa editorial, neste caso, indivíduos que fazem parte da comunidade LGBTQ+, pessoas que nunca haviam sequer considerado que alguma vez necessitariam apoiar-se na Segunda Emenda da Constituição. À distância e sem residir no país, testemunhei o ambiente de incerteza, receio e ansiedade que é neste momento sentido por aqueles que ansiavam um raiar de um dia melhor, e não o retorno de um pesadelo que, desta vez, tem tudo para ser significativamente pior.

No espaço de poucas semanas, já ouvi múltiplas pessoas dizerem algo que, parafraseando, se resume a: “Diziam que quando Trump ganhou em 2016 seria um desastre, mas não foi assim tão mau. Desta vez não será diferente.” Algo semelhante foi pronunciado sem qualquer refutação que o desafiasse, numa recente discussão aberta sobre o fascismo. “Fascista” veio a tornar-se num rótulo quase vazio, arremessado de um lado para o outro com a intenção de que porventura pegue, e será talvez por isso que denominar Trump de fascista deixou de assustar quem ainda deveria ter receio do que aí vem.

Timothy Snyder1 diz-nos que um fascista é um contador de histórias que narra sem que as palavras se encontrem com os seus significados, sem necessidade de coerência ou consistência, mas casando a necessidade com a conspiração. O efeito de persuasão de uma campanha política, explica-nos Drew Westen, equilibra-se na narrativa que é construída. Trump apenas necessitou de tatear pelas partes doridas da sua nação e procurar segurar apoiantes através do apelo ao medo, à raiva, ao ódio, à frustração, ao ego nacionalista e à aversão ao “outro”.

Para um fascista é sempre necessário haver um inimigo, que é despersonalizado de modo a extrair-lhe a humanidade que inspira empatia. Nos últimos meses, Trump referiu-se aos seus oponentes políticos com uma retórica inflamatória – denominando-os de “enemy from within” – e, envolto em hipocrisia, acusou o outro lado de padecer do mesmo incentivo à violência – uma acusação que ganhou credibilidade e pujança depois de uma primeira tentativa de assassinato. O candidato Republicano declarou num ‘rally’ em New Hampshire: “We pledge to root out the communists, marxists, fascists, and the radical left thugs that live like vermin within the confines of our country.” No mesmo ‘rally’ elogiou Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria, tal como no passado havia elogiado Vladimir Putin, Narendra Modi, e até mesmo Kim Jong-un.

Em relação aos imigrantes, os chamados pela Direita de ’illegal aliens’, quem no mundo – mesmo aqueles desapegados da política americana – não soube da acusação que Trump lançou durante o debate contra Harris, ecoando o seu ‘running mate’ JD Vance, de que haitianos em Springfield e Ohio tornavam os animais de estimação dos residentes em refeições. Uma mentira clara, que foi desmentida, entre muitos, pelo próprio presidente da câmara de Springfield, Rob Rue, um Republicano. Contudo, pouco importa que não exista um fundo de verdade nas palavras de Trump, pois surtem efeito independentemente da veracidade. A mentira colocou não só os haitianos na cidade numa posição precária, mas todos aqueles que, por conta do tom da sua pele, pudessem ser confundidos com nativos do Haiti. Como se não bastasse, mais de 30 ameaças de bomba – que se confirmaram falsas – foram feitas contra escolas, edifícios governamentais e residências de oficiais do governo em Springfield. 

Mas não são apenas imigrantes ilegais – que a administração Trump pretende deportar em massa – e opositores políticos que se tornaram no bode expiatório e coletor de votos para o vencedor das eleições e os seus aliados do GOP. A sua campanha presidencial gastou 215 milhões de dólares em anúncios ‘anti-trans’, e a sua vitória implica não só a reforço de leis discriminatórias, como também uma licença informal para quem está disposto a chegar ao ponto de cometer crimes de ódio.

Conseguimos observar o efeito dominó de expressões de hostilidade e depravação que a vitória do candidato Republicano teve nos seus apoiantes, como a viralidade das frases “’your body, my choice” – cunhado pela personalidade de extrema-direita Nick Fuentes – “get back to the kitchen,” e “repeal the 19th” – a emenda que finalmente deu às mulheres americanas o direito ao voto mais de uma década antes de Portugal o fazer (em ambos os casos com limitações que requereram um esforço duradouro para superar). No entanto, não foi apenas a misoginia – que se manifestou contra Harris durante toda a sua campanha – que prevaleceu. O racismo também recebeu carta-branca, como podemos observar através das mensagens que várias pessoas afroamericanas receberam a convidá-las para colher algodão na “plantação mais próxima.”

O ‘rally’ em Madison Square Garden foi o apogeu que encapsula a campanha de 2024 do septuagenário. Uma noite em que a xenofobia e a intolerância foram celebradas em todo o seu esplendor. Quando Trump finalmente subiu ao palco, e apelidou a imprensa de “fake news,” os seus apoiantes, conta-nos Ian Prasad Philbrick do The New York Times, empunharam os dedos do meio na direção de si e dos outros jornalistas presentes. É uma perfeita analogia para o impacto que Trump e a sua retórica produzem nos seus seguidores.

Isto são meros exemplos do efeito em cascata que a influência de fascistas modernos como Trump, empoderados por armas de lavagem de mente digitais – e contando desta vez com a ajuda do oligarca Elon Musk – surtem na complexa tapeçaria social e cultural de uma nação, dilatando os fossos de polarização entre dois lados que se têm vindo a tornar cada vez mais incompatíveis, ao ponto de uma guerra civil não parecer uma possibilidade tão longínqua e improvável. Não sou a primeira a mencionar este cenário cada vez menos hipotético, mas não menos indesejado.

Já tivemos vislumbres do que pode aí vir, tanto durante a campanha de 2024 como, após a vitória decisiva, através dos indivíduos selecionados para fazerem parte da administração do 47.º Presidente dos Estados Unidos, escolhidos com base no quão leais serão na sua dedicação à agenda Trump – que, por esta altura podemos argumentar, seguirá, com maior ou menor rigor, o Project 2025, delineado pela ultraconservadora Heritage Foundation.

Se 2016 aparentou ser uma anomalia por muitos imprevista, esta vitória prova que os problemas que infetam o país – e que se manifestam também no resto do mundo, Portugal inclusive – são de natureza sistémica. E desta vez, durante um segundo mandato, Trump conta não só com um Supremo Tribunal esculpido à sua medida – o mesmo que inverteu em 2022 as proteções dos direitos reprodutivos das mulheres ao abrigo de Roe v. Wade – como ambas as Câmaras – a Câmara dos Representantes e o Senado – modeladas para o deixar agir com maior impunidade do que seria possível em 2016.

A segunda vitória de Trump demarca várias tendências preocupantes precisamente pelo engajamento que têm vindo a adquirir e a angariação de lealdade através de realidades paralelas que pouco ou nada se encaixam com factos. O que mais importa, no fundo, não é enquadrar Trump no rótulo de fascista como se estivéssemos a jogar Quem É Quem, porque o significado da palavra não aparenta ser suficiente para tirar a figura do pedestal. O ser fascista tornou-se o monstro papão que já poucos – quem não tem suficiente entendimento do passado, ou do presente, ou de ambos – temem. Ao arriscar enveredar por essa avenida, arriscamo-nos a não sair do lugar, pois o fardo da História a repetir-se não pesa a todos da mesma forma, nem mesmo quando as consequências se ressentem no presente.


  1. Snyder, T. (2024, 8 de novembro). What Does It Mean That Donald Trump Is a Fascist? The New Yorker. https://www.newyorker.com/magazine/dispatches/what-does-it-mean-that-donald-trump-is-a-fascist ↩︎

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Em 2020, concluí a licenciatura em English with Creative Writing na Queen Mary University of London, havendo graduado com First Class honours. Inscrevi-me em 2022 no mestrado em Edição de Texto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalho em redação de conteúdos para publicações estrangeiras desde 2021.

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