“(…) Hoje somos cerca de 27.000 nesta organização, existindo atualmente 31 escolas de Psicologia em Portugal. (…)
Hoje, é possível seguir um Código Deontológico no exercício da profissão, fazer um caminho de especialização, seguir referenciais, linhas de orientação e recomendações para prática da profissão, aumentando a segurança do exercício profissional com melhor qualidade de serviços para os cidadãos. Hoje, a prática da Psicologia por não psicólogos, sempre que conhecida, é denunciada às autoridades, seguindo um dever de protecção da saúde pública. Muitos milhares de colegas, alguns já desaparecidos, lutaram durante muitos anos para que isto fosse possível e para que o modelo de regulação da profissão em Portugal seja hoje um exemplo prosseguido por milhares de outros colegas por todo o mundo. Amanhã, tudo isto poderá já não ser possível.
(…) Agora, decorre o período de alteração dos estatutos. Este processo foi entregue ao Governo, que nos envolveu através do Ministério da Saúde, em prazos de poucos dias, não permitindo o alargamento da discussão na vida interna da Ordem. Foi possível chegar a uma proposta que defende melhor as atribuições da Ordem e a profissão do que a primeira proposta apresentada pelo governo. Esta proposta terá sido remetida pelo Ministério da Saúde ao Ministério dos Assuntos Parlamentares, da ministra Ana Catarina Mendes, que coordena todo o processo entre Ordens. Todo este processo decorre em simultâneo para todas as Ordens e é acompanhado pelo CNOP – Conselho Nacional das Ordens Profissionais, no seio do qual temos participado activamente.
Assim, foi com enorme surpresa e estupefação, que recebemos, em conjunto com outras 7 Ordens (desconhecendo-se ainda o que acontecerá às restantes) uma nova versão da proposta de alteração dos estatutos da OPP. Não a enviamos por ter dever de reserva. Entre outras alterações com impacto, desregula a profissão, permitindo que todos, independentemente da sua formação ou profissão, em qualquer área da sociedade, possam exercer os actos dos psicólogos. (…)”
Começou assim um e-mail que nos veio surpreender, abalar e desassossegar.
Ora, vamos por partes: o que sabemos aqui?
Através do Ministério da Saúde é iniciada uma proposta de reformulação aos Estatutos de algumas ordens, nomeadamente e esta em específico, a Ordem dos Psicólogos Portugueses. Não nos interessando, a nível de análise, as demais ordens mencionadas de forma geral nesta comunicação.
Sabemos que a proposta está atualmente em análise pela ministra Ana Catarina Mendes, a qual coordena todo este processo entre ordens. Sabemos, também, pelo mesmo e-mail, que o CNOP acompanha o processo, mas “por ser tudo tão rápido”, não foi possível o debate intra-ordem, no caso específico da psicologia.
O que sabemos mais? Sabemos que, de alguma forma, por alguma razão, em algum momento, este movimento inofensivo culminou numa versão que “desregula a profissão, permitindo que todos, independentemente da sua formação ou profissão, em qualquer área da sociedade, possam exercer os actos dos psicólogos.”.
Mas o que é que podemos inferir daqui?
Claro que seria necessária uma análise detalhada ao documento para:
- Compreender quais são estes “atos psicológicos” que poderão passar a ser “feitos por todos” (são todos? São alguns? Se são alguns, quais são?…);
- Compreender que “todos” é que cabem nestes “todos” (é mesmo todos? Ou só alguns de áreas que se cruzam connosco, como psicomotricidade, gerontologia,…);
- Perceber de que forma, ao certo, esta ação iria ser regulada pelas entidades existentes para esse efeito;
- Compreender se, efetivamente, com este movimento, de que forma o trabalho dos psicólogos poderia ficar “anulado” pelo trabalho de outrem.
Aqui a problemática poderá ser colocada sob a forma de diversas questões (que se colocam sobre estas informações tão incompletas que temos…):
- Esta “brecha” aqui criada, proporciona a divergência na procura de emprego por parte dos técnicos de psicologia? Que impacto é que isso terá na empregabilidade nacional? Somos cerca de 27000, mais coisa menos coisa, uma parte destes no desemprego no que concerne à sua área. Há falta de técnicos a nível de saúde pública, apesar da procura ser imensa e de, efetivamente, haver recursos humanos para cobrir as necessidades. Contudo, o investimento financeiro fica sempre longe das idealizações, mas até que ponto esta problemática ficaria resolvida com esta alteração?
- Qual a dimensão da armadilha que esta “brecha” cria na credibilidade do trabalho de um psicólogo? Será que a reflexão generalizada da população será “se todos podem fazer é porque o que eles fazem não é assim tão especializado e difícil”?
- Qual o impacto desta “brecha” na saúde mental dos portugueses? Pois o trabalho dos psicólogos apenas pode ser feito por psicólogos. Apenas um psicólogo formado (e bem formado) consegue compreender e concetualizar os casos de forma exímia, com brio e profissionalismo, sob orientação de um código deontológico criado com vista à manutenção da qualidade do serviço prestado aos demais, mas também salvaguardando os direitos do cliente enquanto cliente. Será que os “todos” que poderão fazer o mesmo que nós se irão reger pelo bom senso (que vale o que vale, e q.b) ou terão de respeitar simultaneamente um código de uma ordem à qual não pertencem? Ou será criado um código deontológico para a execução de atos psicológicos, independentemente da sua área ser ou não psicologia?
- E a ordem? Será que continua a fazer sentido existir uma ordem para uma área que, invariavelmente todos poderemos exercer, com ou sem o prejuízo do pagamento de cotas, com ou sem prejuízo do respeito de um código, etc.?…
Fizemos história, estamos há anos a dignificar uma profissão, COM BASE CIENTÍFICA COMPROVADA, com o objetivo de dignificar e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. E agora deparamo-nos com esta mágica ideia … não sendo isto apenas um atentado à capacidade, brio, qualificação da Ordem e, sobretudo, dos seus profissionais, é um atentado a qualquer cidadão. Devemos prezar pelo bem maior e melhor dos cidadãos, pelo controlo da qualidade dos serviços que lhe são prestados (TODOS!!), mas atualmente é custoso, difícil, e moroso sermos psicólogos, mas a solução passa por meter qualquer um a exercer atos dos psicólogos?! Somos milhares, há trabalho para todos, mas eles não estão no terreno (não por vontade própria), mas a solução é colocar não formados na área a fazer o que fazemos, sem garantir a qualidade do serviço prestado?!
Até parece simples… uma crise de pânico pode ter desencadeante, mas pode não ter. E se tiver começado por questões de neurodesenvolvimento previamente associadas e não detetadas antes? E se os quadros se complicam depois de bem concetualizados? Será que estes “todos” conseguirão olhar para eles com cabeça, tronco e membros? Irão respeitar aqui a competência que têm para ajudar o cliente e reencaminhá-lo para alguém que o compreenda detalhadamente? Atenção, aqui é mesmo preciso compreender ao detalhe que “atos dos psicólogos” aqui são mencionados e que “todos” cabem nestes “todos”, mas na falta de informação, todas as histórias são verídicas…
Faz-me lembrar a história dos 3 porquinhos e a qualidade das diferentes casas que eles construíram… um Estado que quer casas de palha que a qualquer momento o vento leva. Neste caso os psicólogos em Portugal estão a demorar IMENSO tempo a construir uma casa de tijolos, para garantir a segurança de todos aqueles que nesta casa se protejam, mas a solução macro passa (nem que por mera hipótese…) por fazer uma casa de palha por ser mais rápida. Mas será tão eficaz?…
Sim, tudo isto pode não ir para a frente, mas a possibilidade foi colocada. Ponto.
Onde é que vai parar a saúde pública?… O desinvestimento acontece na medicina e enfermagem, estamos a formar médicos e enfermeiros para o estrangeiro (e que sortudo é este “estrangeiro”!!!), e agora iremos fazer o mesmo com psicólogos? Temos uma economia em ascensão “por causa dos emigrantes” e dos “turistas”, mas estamos a usar esse avanço económico para criar bons profissionais para eles também irem para fora e, daqui a uns anos, serem eles emigrantes e turistas na sua própria nação?
Vemos as mais altas referências da política portuguesa a falar no investimento em saúde mental, na importância destes profissionais na “nova reorganização” do SNS e da sociedade, e desta sua imprescindível presença, mas também vemos um país, na pessoa dos seus representantes, ponderar desregular a prática da saúde mental… Estamos a prezar pela qualidade ou pela comodidade?!…
Enquanto cidadã, cada vez me sinto mais desprotegida!! Enquanto psicóloga, cada vez me sinto mais desrespeitada.
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