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A ideologia política nos textos de opinião: viés ou individualidade?

Tempo de leitura: 5 minutos

Contexto

Recentemente, fui abordado com uma frase que tem residido no fundo dos meus pensamentos diários: “não consigo ler um texto de opinião de uma pessoa com ideologias políticas assumidas”. Intrigado, tentei clarificar a questão. Percebi que esta pessoa não conseguia desconectar a ideologia política do autor, e que, por isso, lia as palavras dessa pessoa com um barulho de fundo: “esta pessoa é do partido X”. Isto é, imaginando que eu sou apoiante do Bloco de Esquerda, se escrevesse um artigo sobre a TAP, esta pessoa iria ver a minha posição como a mesma, ou uma variação em ré menor, da posição do meu partido. Esta pessoa referiu também que, para escrever textos de opinião, o autor não poderia ter nenhuma ideologia política assumida (nesta afirmação tenho algumas dúvidas relativamente à minha memória, por isso não a irei abordar diretamente, mas penso que indiretamente o farei). Procurei por falácias lógicas, mas estas afirmações não aparentam ter nenhuma. No entanto, discordo de ambas.

Este texto é a minha resposta a essa pessoa.

Resposta

Divido a minha resposta em duas partes. Em primeiro, questiono se será possível alguém com ideologias políticas assumidas escrever sem viéses ideológicos. De seguida, questiono: “E quê? Qual é o problema de se saber a inclinação política de um texto?”.

Primeiro, sobre escrever sem viés político. Utopia? Eu argumento que é uma correlação negativa entre autoconsciência e viés – i.e., quanto maior consciência dos nossos viéses, ideologias, pensamentos, comportamentos, menor será o nosso viés (se o quisermos eliminar). O que quero dizer é: se o André Ventura quisesse escrever um texto a apoiar o Lula da Silva, ele seria capaz (se realmente quisesse). Aliás, argumento que quem não está disposto a fazer este exercício não tem lugar na política. O outro lado tem algo a ensinar-nos. Sempre. Ou pelo menos seria assim que deveríamos pensar… Ainda sobre este ponto (e aqui fugindo um pouco à afirmação que esta pessoa me disse), tenho a dizer que ignorar textos de opinião apenas pela sua suposta ideologia política é um insulto à individualidade. É puramente um argumento a favor do coletivismo – se pertences a um grupo X, não mereces ser ouvido, porque a tua opinião é a do grupo X. Elimina-se o indivíduo da equação. Eliminam-se memórias, experiências e o sentido de identidade. Desacredita-se a capacidade de uma pessoa ser mais do que o grupo a que escolheu pertencer. Não poderia estar em maior desacordo. Retomando e resumindo: escrever sem viés, ou mesmo tomar uma posição de “advogado do diabo”, são exercícios essenciais, diria eu, para todos.

Segundo, “E quê? Qual é o problema de se saber a inclinação política de um texto?”. Vamos assumir que o autor não consegue eliminar o seu viés e que de facto a sua opinião é a mesma da do grupo onde se insere. Voltando ao cenário do Bloco de Esquerda – imaginando que sou um apoiante que escreve sobre a TAP – o meu texto terá quatro grandes públicos: 1) apoiantes do Bloco de Esquerda, nos quais busco concórdia e apoio ao escrever opiniões próximas do partido, com a possibilidade de acrescentar algo à opinião do partido; 2) pessoas indecisas na sua posição política, cujo voto (e mais importante, apoio) posso conseguir angariar com um excelente texto de argumentação; 3) apoiantes de partidos diferentes, os quais servirão de meu homólogo de debate e 4) pessoas com humildade e interesse no tema, independentemente da posição política. Estes quatro grandes públicos não chegam para abranger toda a sociedade, porque faltam dois grandes públicos: 5) pessoas sem interesse no tema e, por fim, 6) pessoas que, apesar de terem interesse, se recusam a ler o texto de opinião ou o lêem sem grande empenho, independentemente da posição política. Apesar de respeitar a recusa de leitura de um texto de opinião (mesmo sabendo o quanto isso ia ajudar à visibilidade de… por exemplo… esta revista…), deixo o apelo a que, se tiverem tempo e interesse, as pessoas do grupo 6) bebam um bocadinho do pensamento das pessoas do grupo 4). Isto porque, mesmo que não aprendam nada de novo com o autor, pelo menos aprendem que não gostam assim tanto da escrita dele. Onde quero chegar com isto? Sei que me desviei um pouco da afirmação inicial – na qual a pessoa deixou claro que, mesmo assim, leu o artigo – mas pensei ser importante deixar claro a minha opinião sobre este extremo. Regressando e finalizando, então qual é o problema de se saber a inclinação política de um texto? Argumento que absolutamente nenhum. A identidade de uma pessoa está emprenhada de viéses. É possível eliminá-los e escrever sem eles, mas, se não o desejam, escrevam com os vossos viéses, sempre terão quatro grandes públicos prontos a vos ouvir!

P.S.: No mundo da investigação qualitativa, existe um conceito chamado “bracketing”, onde os investigadores colocam em evidência os seus viéses, de modo a mostrar ao leitor que os resultados da investigação têm de ser lidos com uma pitada de cautela. Isto porque, este conceito, apesar de ajudar a identificar os viéses, não os elimina a não ser que o/a investigador/a consiga fazê-lo. Outro pensamento: se repararem, uma possível definição para um partido político é apenas uma síntese dos seus viéses. Nem imagino como seria se os artigos de opinião tivessem todos os viéses dos autores identificados no início do texto. Talvez até seja uma solução…

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